A BOLA JÁ NÃO É O QUE ERA

Vivia-se a década de cinquenta do Século passado, quando na minha terra natal – Bismula (Sabugal) – comecei a ser observador de futebol. Tinha chegado àquela freguesia o Padre Ezequiel Augusto Marcos, que transformara a sua casa paroquial num centro de convívio, cultural e desportivo, além de “Sede” da Equipa Bismulense, onde estudava as técnicas e tácticas, sendo treinador, dirigente e muitas vezes árbitro. Também era na sua casa que ouvíamos os relatos de futebol, numa telefonia alimentada a uma bateria com um fio ligado à torre do relógio, principalmente os jogos onde participava o Sporting (o Pároco era um fiel adepto).

O recinto de Futebol situava-se no Campo dos Fiéis de Deus, a nascente da aldeia. Ali se desenrolaram jogos com outras equipas das povoações vizinhas, principalmente as de Aldeia da Ponte, da Nave, Aldeia da Ribeira, Vilar Maior. A nível interno, jogavam os bairros da Praça, da Relva, da Lavadeira e da Santa Bárbara. Não havia problemas no recrutamento de jogadores, porque havia muitos jovens, dos quais eram escolhidos os melhores e assistência não faltava. Quando as equipas entravam em campo, com o guarda-redes à frente com a bola em sua posse, todos davam um grito de guerra festiva, ipi, ipi, ipi, urra, e dava-se um chuto na bola para o alto.

No Campo de Futebol as marcações eram feitas de cale com um arado de lavrar a terra, com os regos não muito profundos.

O Padre Ezequiel Marcos ensinava que no desporto não havia inimigos, mas sim adversários. O importante era procurar jogar, se possível bem e com muitos golos, o sal e a pimenta dos jogos. No seu múnus pastoral, dizia que através do desporto também se chegava à vida celeste.

No final daquela década, e com o ingresso na Escola Apostólica de Cristo Rei em Gouveia, na frequência de estudos secundários, acabei por participar nos jogos da equipa dessa instituição escolar. Recordo o Campo do Farvão, onde todos os sábados se realizavam jogos entre equipas de outros agrupamentos escolares gouveenses e onde assistíamos aos jogos oficiais regionais, distritais e da terceira divisão nacional.

Vibrei com os jogos europeus do Benfica e Sporting transmitidos pela RTP, muitas vezes apareciam muitos riscos no écran com a legenda “o Programa segue dentro de momentos”.

Com a emigração dos meus pais e irmãos para Setúbal, vi nesta cidade os jogos do mundial de 1966 em Inglaterra e chorei por não irmos disputar a final e também quando o Vitória de Setúbal desceu de Divisão, no Estádio do Bonfim que vi nascer. Na família éramos todos do Vitória de Setúbal, “graças a Deus”, dizia o meu saudoso Pai numa entrevista ao jornal do Clube Setubalense. Também a minha saudosa Mãe era uma adepta fervorosa dos sadinos e não se esquecia de colocar umas velas ao Senhor do Bonfim, quando o resultado era positivo.

Com treinadores como Fernando Vaz, José Maria Pedroto e Allison, o futebol do Vitória de Setúbal era majestoso, maravilhoso, alegre e cheio de golos. Num jogo, Allison vestido britanicamente (impecável gabardina) foi para o banco de suplentes bem regado de uísque escocês (não o ordinário de Sacavém). Ao fim de algum tempo dormitava, quando o seu adjunto Roger o acordou: “Mister, já estamos a ganhar por 3-0”. Resposta do treinador: “acorda-me quando marcarmos mais dois golos”. No final do jogo a “manita” estava dada, felicitou os jogadores, cumprimentou a equipa de arbitragem e a visitante e com o seu chapéu na mão saudou os milhares de sócios vitorianos muito satisfeitos. Era assim noutros tempos.

Hoje não entendo como é possível viver-se num clima constante de guerrilha entre todos os sectores. Nos relvados e nas bancadas assistimos a cenas lamentáveis com péssimos actores. Os espectáculos são medíocres e a ética está sempre fora de jogo, reflexo do mundo onde vivemos.

Os campos verdejantes são hoje campos de batalha: malfeitores, claques, dirigentes, mentiras organizadas, tentáculos de polvo, apitos para todos os gostos ou conveniências. Caminhar nesta direção pode ser um profundo golpe no mundo do futebol e uma penalização grave também na nossa economia que nunca respirou saúde.

O futebol está doente, ligado à máquina televisiva das discussões inúteis e vazias, onde os verdadeiros protagonistas são esquecidos.

Era positivo que meditássemos nas palavras do escritor futebolista Albert Camus: “o que mais sei sobre a moral e as obrigações do HOMEM devo-o ao Futebol”.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Dezembro/2017

A BOLA JÁ NÃO É O QUE ERA