De Fevereiro de 1971 até Fevereiro de 1974 trabalhei nos escritórios de uma empresa portuguesa de nome A. Cavaco, Lda. O patrão Eng.º Cavaco, que explorava os empregados e as águas de várias povoações de Portugal e da Guiné, desapareceu num barco à vela a seguir ao 25 de Abril. Foi nele que antecipei a Revolução, dando-lhe um “cravo” em Fevereiro/74 por todas as injustiças que cometeu ao longo dos anos. Tornei-me um herói para os colegas de trabalho (“o Fernandes teve-os no sítio”) e fui despedido.  

 

Nesses tempos de Cavaco, tínhamos de almoçar fora ou levar a comida para o escritório, onde havia uma pequena copa. Como o subsídio de refeição nunca chegava, eu e os meus companheiros zzzzzprocurámos uma casa de pasto que enchesse a nossa barriga e não esvaziasse o nosso bolso.

Encontrámos uma tasca (nessa época o turismo de massas ainda não desvirtuara a genuína Lisboa) perto da Rua Rodrigo da Fonseca, junto à Fábrica da Seda e não muito longe do Largo do Rato ou da Mãe de Água. Hoje já não existe.

O proprietário era um dos muitos galelos que emigrara para Lisboa. A casa estava cheia de gente com apetite, principalmente taxistas a bater com a faca e o garfo na mesa. Não tardámos até saborear um bom e barato bacalhau com grão, além de iguarias galegas. Desde essa altura passámos a frequentar esse estabelecimento.

Entrámos em empatia com o dono, que nos aconselhou a tomar sempre uma ginjinha numa taberna no largo de São Domingos, propriedade de um galego que a fundara no séc. XIX para adocicar o paladar dos portugueses. Ainda lá está, mas a ginja já só sabe a turismo e não resta pinga do bem servir galego.  

O simpático dono da Tasca do Bacalhau explicava-nos que a primeira Comunidade da Galiza chegou a Lisboa há mais de trezentos anos para fugir da miséria e da fome. A capital recebeu-a de braços abertos, abrindo-lhe sobretudo as portas da restauração na Zona Pombalina. O galego, além de ter uma língua parecida com o português, é gente trabalhadora (quem não conhece o ditado “trabalhar como um galego?”) e alegre.

Depressa se realizaram casamentos galaico-portugueses, festejados na primeira Sede do Centro Galego de Lisboa, aberta no ano de 1908, na Rua da Rosa, no coração do Bairro Alto. Mais tarde mudou para a Rua Júlio Andrade, junto aos Mártires da Pátria. Muitas vezes almocei com os meus companheiros nesse Centro Cultural e Gastronómica da Galiza.

Os primeiros emigrantes galegos tiveram um trabalho meritório e pouco reconhecido na construção do Aqueduto das Águas Livres, que abastecia a Capital Portuguesa do líquido indispensável à vida. Também no Bairro da Bica viviam muitos aguadeiros galegos.

Nos anos da Guerra Civil de Espanha, 1936-1939, e do franquismo, muitas Comunidades da Galiza fugiram principalmente para Lisboa. Chegaram galegos de todos os estatutos sociais e profissionais, entre eles muitos intelectuais de esquerda e republicanos. Muitos trabalharam no Teatro Nacional D. Maria II e participaram nas célebres tertúlias literárias do Café Gelo no Rossio.  

  Alguns dos restaurante mais caros da Capital (o Solar dos Presuntos, o Gambrinus, o Ramiro) tiveram a mão galega, além de muitas hospedarias que ganharam notoriedade.

Também em Setúbal conheci o galego José Hernandez Dias, proprietário do enigmático Café Brasileira, na Praça do Bocage. Era um grande apaixonado pelo Vitória de Setúbal, com simpatia pelo Real Madrid. Nesse local, trabalhou o meu irmão Manuel Fernandes, que hoje ainda reconhece que foi para ele uma grande escola profissional. Nesse Café também aconteceram várias tertúlias, muitas ligadas ao Clube do Sado, com as presenças de Pedroto e Fernando Vaz.

Esse galego, que faleceu há poucos anos mas que continua na memória daqueles que o conheceram, era um grande pedagogo. Antes do meu irmão Manuel, ainda gaiato, partir para outros voos, o Galego deu-lhe um decisivo ensinamento:

“Manel, há duas coisas que tens de prestar atenção na tua vida: uma é o dinheiro que desaparece, a outra é a gaita quando aquece”.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Fevereiro/2018