A ESTÁTUA

A Estátua foi encomendada pelo município a um escultor com oficinas em terras alentejanas. Entre as suas obras magnas, conta-se na “ágora” da polis um obelisco gigante apontado ao céu, devidamente guarnecido de cilindros, para uns uma cerejeira conceptual, para outros um vulgar “mamarracho” que rouba a vista da Gardunha, pois a obra apresenta proporções dignas de uma Acrópole, reclamando total atenção a quem visita a cidade.
Respondeu-se, assim, através de nova encomenda municipal, ao apelo de milhares de amigos e seguidores do seu ídolo de sempre. Era necessário que esta personagem, conhecida nacional e internacionalmente, ficasse na memória de todos, perpetuada na sua terra natal.
Ainda a Estátua estava a ser congeminada e já surgiam opiniões discordantes quanto à sua legitimidade, porque havia naquele território outras personagens para serem recordadas, porventura menos mediáticas mas de igual ou superior importância para a comunidade. A verdade é que dessas individualidades poucas palavras se escreveram e ninguém levantou a voz para que fossem recordadas.
A seguir vieram as divergências quanto ao local onde deveria ser colocada a Estátua. Houve quem defendesse a primeira rotunda, com os braços abertos para saudar os visitantes e bem acolher os transeuntes; houve quem sugerisse a segunda rotunda, sempre ficaria mais próximo dos seus conterrâneos; e ainda se falou na terceira rotunda, mas esta não existia.
Alguém advogou a ida da Estátua para o Lago Seco do Bairro Novo, mas logo se levantaram inúmeras vozes contra, defendendo a tese de que tinha de ir para junto da Igreja Matriz. Aqui voltaram a surgir muitas dúvidas na escolha do sítio. Uns sustentavam a ideia de que deveria ficar diante da porta da Igreja, outros preferiam o adro, uma minoria significativa junto à casa paroquial ou diante da sacristia. Logo uma voz se levantou, “ não se vai ferir suscetibilidades”, e houve até quem sugerisse o forno comunitário, afinal sempre abençoava as fornadas do pão caseiro.
Analisado o problema, foi decidido por unanimidade que a colocação da estátua seria num espaço recuperado a poente, junto da igreja Matriz, na fronteira entre as duas freguesias, como um símbolo de paz e de sã convivência entre os povos.
A Estátua chegou e uma grua a colocou. Alguém perguntou onde estava o presbiterado, recebendo rápida réplica: “não veio, tem medo que a Estátua lhe caia em cima”. Após aceitável hesitação na escolha da passagem que melhor serviria ao homenageado, a complexa figura ia do Génesis ao Apocalipse, lá se abriram as páginas da Bíblia com a solenidade que o momento pedia. E novamente ecoaram os dissidentes, agora com a sua feitura. Levantado o véu de Verónica, não queriam acreditar que aquela era a figura da personalidade celebrada. Alertado, o escultor logo reagiu: “ a obra está aí, perfeita como a concebi e cada um é livre de fazer críticas e objeções.”
Um homem ligado às espiritualidades, ao olhar de longe para a Estátua, manifestou o desagrado pelos arcos, propícios para as crianças brincarem sem consciência do seu real significado. Uma velhinha, que por ali passava, explicou que eram as curvas da estrada da vida, nada fáceis de percorrer. Vários curiosos presentes aplaudiram a explicação e, entre risos, um senhor disse que a velhinha daria uma boa Ministra da Cultura e das Artes. Com as mãos na cabeça, esta ripostou que só tinha a terceira classe e para governo já lhe bastava os muitos anos com um agregado de nove filhos e apenas um ordenado de operário.
Também pulou a Discórdia pelo facto de a Estátua estar de costas voltadas para a Igreja, mas aí com claro apoio maioritário, apenas um voto de vencido de um radical extremista com saudades das querelas do passado, que expressamente pedira às entidades oficiais para que a Estátua não olhasse para a aldeia “inimiga” nem para a “Faixa de Gaza”.
Uma mulher piedosa, a lembrar Maria Madalena, mostrou-se triste ao olhar a Estátua: “sempre teve uns caracóis tão bonitos e agora está ali depenado”. Outra pia senhora, alega que tinha barba. Logo um brincalhão as sossegou: “a remessa do cabelo chega mais tarde.”
Uns queriam a Estátua mais abaixo, outros no meio, outros mais acima, mais para a direita, para a esquerda, até alguém gritar: “coloquem-na em cima do campanário da Igreja Matriz, será o nosso Cristo Rei!”
Para abafar o ruído, o Povo de Deus fintou o programa oficial e cantou em uníssono um Te Deum, uma Avé Maria e um Pai Nosso, rezado de mãos dadas por todos os presentes e pelo bom êxito da operação.
A arte é arte e a sua riqueza está na diversidade de opiniões, muitas vezes contraditórias.
O meu saudoso familiar, Sebastião Clemente Lambelho, carpinteiro e empresário de obras públicas, recitava este poema: “casa que é feita na praça/Muito irá dar que falar/Para uns do chão não passa/para outros ao Céu vai parar.”
Será que o escultor, ao não ter apresentado a cara que todos conhecem do homenageado, quis alimentar a polémica de uma figura problemática em Vida e agora problemática em Estátua?
O nosso Homem era multifacetado, esta talvez seja uma das suas faces.

António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Março/2016