A SÉTIMA ARTE NA PANASQUEIRA

O ano de 1895 ficará para a história por dois factos: o início da exploração económica do cinema pelos Irmãos Lumière e a abertura das minas na Panasqueira. Em Paris, os Irmãos escavavam o subsolo do espectador; na Panasqueira instalava-se a multinacional inglesa Beralt Tin and Wolfram, com o objetivo de extrair das entranhas da terra o valioso volfrâmio, mineral muito requisitado na 2ª Grande Guerra Mundial.

Tal como na indústria cinematográfica, muitas centenas e centenas de trabalhadores chegaram à Panasqueira para viver o sonho ou o pesadelo da mina. Gente de todo o lado, com destaque para homens da beira, minhotos e uma grande comunidade de Cabo Verde, procurou agarrar esta oportunidade para matar a fome. Técnicos da África do Sul, Administradores e Engenheiros do Reino Unido redigiam contratos e documentos em inglês, e assim colonizavam um território, erigindo uma espécie de cidade operária inglesa no interior de Portugal, espalhando o seu logótipo de poder até aos vasos de flores. No global, chegaram a trabalhar nas Minas mais de 5 mil pessoas.

Com o aumento brutal da população, foi preciso dar respostas religiosas, sociais, desportivas e culturais. A Igreja centrava-se no Padre Manuel Leal Vaz, pároco do couto mineiro, que segundo dizem se colava mais aos patrões do que aos trabalhadores. No entanto, escreveu uma pequena história sobre as Minas, exímia na retórica das estatísticas, fundador do Jornal “ O Mineiro”, criou a JOC (Juventude Operária Católica), contando com o apoio dos jovens, do minhoto José António Loureiro, um pedreiro de grande cultura, que tocava violino e adorava e ensaiava teatro; fundou o grupo de Teatro da Panasqueira, revitalizou a devoção a Santa Bárbara (Padroeira dos Mineiros) e foi um grande impulsionador da construção do Monumento ao Cristo Operário e também muitos filhos dos mineiros receberam sapatos e roupas que não tinham. Paralelamente, davam-se os primeiros passos para o associativismo mineiro. Quanto ao desporto, ninguém esquece as décadas de cinquenta e sessenta. A equipa de Hóquei em Patins da Panasqueira levava a melhor, com jogadores de alto gabarito como Álvaro Urgeiro e Américo Solipa.

Há semanas, acompanhei uma simpática senhora arquiteta e dois amadores da sétima arte até ao que resta da antiga sala de cinema dos mineiros. Desconhecia completamente as atividades cinematográficas nessas paragens e viajei à procura dessas memórias. O cinema na Panasqueira iniciou-se em 1928, com uma máquina de cinema mudo adquirida pela Administração das Minas (Beralt Tin), que projetava filmes na Escola Primária.

Mais tarde, junto à Galeria nº 5, o Clube Recreativo, com o apoio da Beralt Tin, construiu uma ampla sala, hierarquizada em primeira, segunda, terceira plateia e um balcão, este reservado às figuras mais importantes da sociedade mineira. Foi esta sala polivalente de cinema que visitámos. É um edifício que conserva alguma imponência apesar da ruína. Tem hoje um telhado de zinco e ainda se vê o xisto, carregado pelos próprios mineiros, nas paredes. Imaginei esses tempos idos, quando os capacetes com lanternas nas galerias subterrâneas eram uma miragem e só a lanterna mágica do cinema iluminava os “homens que nunca viam a luz do dia”.

As máquinas de projeção, os bancos em madeira e o palco ainda permanecem lá. Apresentam um design comum da altura, pensado e desenhado para o local, tendo em conta as suas funções e enquadramento. Vemos também a tela esfarrapada dos sonhos, varrida por ventos impetuosos ou furada por cowboys em duelo. Cartazes, fichas técnicas, contratos, tudo isso o vento levou. É espaço, quase uma Igreja fria sem fiéis, que parece ansiar um último estertor antes de desaparecer no silêncio dos tempos. Alguém comenta que a melhor homenagem a prestar-lhe é deixá-lo assim, sem a tentação do restauro ou de memórias artificiais e vendáveis, antes sentindo o trabalho implacável do tempo, sem deixar rasto, matéria de sonhos. 

Esta casa da sétima arte não se inferiorizava em nada às melhores salas do país. Apresentava boas condições para teatro, música e dança, não faltando três camarins de apoio. Segundo a opinião da Arquiteta Ana Cunha, da Camara Municipal do Fundão, o edifício do cinema da Panasqueira, é “ em alvenaria de pedra de xisto aparente (material local) remetendo para uma arquitetura popular, a mestria do aparelho de pedra, bem como o arco em xisto ao cutelo, que delimita a entrada principal do cinema dele um edifício muito interessante do ponto de vista do seu valor arquitetónico. A patine do Xisto, do tipo grauváquico, é também uma característica típica do lugar, apresentando cores entre os cinzas, verde e o laranja, proveniente de solos ricos em ferro, cobre (proveniente das calcopirites) e volfrâmio. Esta rocha pela sua riqueza ao nível da textura e cor, confere uma imagem com grande valor estético a um edifício, que pela sua localização sobranceira ao povoado, não se distingue, pelo contrário, enquadra-se totalmente na envolvente fazendo parte íntegra da paisagem circundante.”

 Através do INATEL, realizaram-se aí grandes serões para trabalhadores, aí cantaram, entre outros, António Calvário, Tonicha, Max, Hermínia Silva, Amália Rodrigues, Fernando Farinha, Artur Garcia, Jorge Machado ou o conjunto “Companheiros da Alegria”. Ali declamaram João Vilaret, António Vilar, Manuel Heleno. Também não faltava a Luta Livre e até o Tarzan Taborda atuou.

Sob as lentes do projecionista Manuel de Oliveira Mendes, o “Manel de Amarante “, os filmes, vindos de Lisboa, chegavam à Estação de Comboio do Fundão e eram conduzidos até à Panasqueira nas camionetas da Auto Transportes. Conta-se que a chave de casa do projecionista era a mesma que a da cabine de projeção (quando este foi a enterrar, levou a chave e foram precisos muitos anos até alguém arrombar a porta da cabine). Os filmes eram projetados para uma sala sempre repleta. Como não havia classificação dos filmes, os menores de idade pediam a uma pessoa mais velha para entrar, à revelia dos seus pais, na “utopia da mina”. O crime cinematográfico de querer sonhar tão novos custava-lhes, às vezes, umas valentes palmadas e muitas vezes uma entrada clandestina para a habitação por uma janela. Com a colaboração do porteiro Luís Lemos, os meninos tinham direito a ver os filmes. As entradas eram vendidas por José Alves Matias de S. Jorge da Beira e tinham um preço simbólico.

Na Panasqueira, as sessões decorriam às quartas, sábados e domingos às matinés; no auge do volfrâmio (minério que alimentava a máquina dos sonhos como tão bem filmaram Joana Torgal e Rodolfo Pimenta em “Wolfram, a Saliva do Lobo”), as estreias nacionais de filmes só aconteciam em Lisboa, Coimbra, Porto e…Panasqueira. Conheci um ex-mineiro de 70 anos, a quem a mina subtraiu um dedo – golpe, gangrena e corte-, que me recorda filmes que viu no cinema das minas, dirigido com autonomia por uma espécie de cineclube mineiro até 1986: “As Sete Mulheres do Barba Azul” de Alfred Santell, “Amor de Perdição” de António Lopes Ribeiro, “Sansão e Dalila” e os “Dez Mandamentos” (na estreia de um novo ecrã cinemascope na Panasqueira) de Cecil B. Demille, “Ben- Hur” de William Wyler, “Tambores ao Longe” de Nathan Juran, “Marcelino, Pão e Vinho” de Ladislao Vajda, “Romeu e Julieta” de Franco Zeffirelli, “A Túnica” de Henry Koster, Música do Coração, policiais, coboiadas, animação e filmes para adultos.

Todo esse arquivo ardeu num incêndio do Clube Recreativo e uma das máquinas de projetar está hoje no Museu das Minas da Barroca Grande. Em frente ao cinema em ruínas, há uma belíssima alameda com pinheiros escandinavos, castanheiros e caminhos de xisto que nos convidam a percorrer.

Nesta abordagem ao cinema das minas, contei com a amizade e os esclarecimentos do Higino Serra Cruz, filho do mineiro Tomaz da Cruz, vítima mortal da malvada silicose; do Prof. Gil Reis, filho de um empregado de escritório das Minas; do Bismulense António Alves Mendes, Professor Primário na Panasqueira; do António Serrão, com quarenta anos de trabalho na mina, filho da Panasqueira do topógrafo António Batista, do mineiro José Alves Matias e do madeirense e enfermeiro João Pereira.

Quem salva este Património das Minas da Panasqueira?

 

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Janeiro/2014