Quem diariamente percorre o percurso Aldeia de Joanes-Fundão pela Avenida Padre Fernando Antunes Ferreira Ferraz, que faz a ligação rodoviária e pedonal entre a Freguesia e a Sede de Concelho, já se cruzou com um cidadão, de estatura meã, vestido de preto, boné e bolsa a tiracolo. Só não o vê se desviar o olhar, o que acontece às vezes.
Marcámos encontro num café em Aldeia de Joanes, era uma destas tardes outonais. À entrada olhares a estranhar a nossa presença. Felizmente não éramos portadores do vírus em “ébolição”. Numa extremidade trocámos ideias e palavras. Quando lhe pergunto se é natural de Aldeia de Joanes, a resposta é pronta: “ nasci no Entroncamento, mas os meus pais são de Aldeia de Joanes, Alberto Maria Tavares e Maria Rosa Nunes Costa.”
É filho único de um ferroviário, que na missão de distribuidor de víveres da C.P. percorreu o país.
O meu interlocutor abre o livro, diz que em Aldeia de Joanes não vive, sobrevive, há muitos anos que a realidade da vida é a lei da sobrevivência. “A minha vida dava um grande filme, sou um vagabundo da vida”. Peguei nessa frase e pedi-lhe para fazer o guião da sua vida, onde é o grande protagonista e argumentista.
Não se fez rogado e começou no Entroncamento na quarta classe.
“Os meus pais, principalmente a minha mãe, queriam o filho padre. Assim, segui para o Seminário de Santarém, onde estive dois anos, abandonando-o por falta de vocação para as vestes eclesiásticas. Para continuar os estudos, vim para o Fundão, frequentei o Colégio de Santo António. Como andarilho do ensino, segui para o Barreiro, onde o meu pai, por motivos profissionais, tinha fixado residência, e matriculei-me no Curso Comercial, na Escola Secundária Alfredo da Silva. Com este curso, empreguei-me em Lisboa, no Grémio do Arroz, onde ganhava acima da média.
Fui para o serviço militar, com recruta em Castelo Branco, especialidade de minas e armadilhas em Leiria, formação de Batalhão em Tomar e embarque para a Guiné. Quando estou quase a terminar a comissão militar, surge o 25 de Abril. A guerra na Guiné deixou-me marcas psíquicas irremediáveis.
Regressado a Portugal, o meu sonho era ser maquinista ferroviário. Durante seis meses frequentei um curso no Barreiro e obtive a carta de condução, que me permite a condução de todas as máquinas de um comboio.
Na cabine conduzi carruagens carregadas de operários, que se deslocavam no Barreiro, Pinhal Novo, Setúbal, Sines, Beja, Évora e outras localidades da Cintura Industrial de Setúbal e Alentejo.
Aconteceu-me o falecimento dos meus pais. Com trinta e quatro anos, sem a ajuda de ninguém e com a síndroma da guerra colonial, entrei em depressões, que obrigaram o meu internamento no Telhal e no Júlio de Matos.
Tive de me sujeitar a uma junta médica, que me atribuiu uma reforma de miséria por invalidez.
Já vivi muito bem, mas por muitas razões, sem esquecer as minhas culpas, as minhas asneiras, cheguei a este estado, recebo umas sopas na Santa Casa da Misericórdia do Fundão e não tenho nada.
Estou há dezasseis anos em Aldeia de Joanes na casa dos meus falecidos pais. Viver aqui é viver nos limites da sobrevivência, como já frisei”.
Fiz questão de me deslocar à “sua residência”, e o que vi recordou-me os piores cenários de miséria, quando acompanhava, nas minhas folgas, a esposa em serviço social, em Bairros problemáticos de Lisboa.
O guião do filme aproxima-se do fim. Se um dia for realizado, não receberá óscares, não irá aos festivais de cinema de Veneza, Berlim ou de S. Sebastião. Ficará para sempre em Aldeia de Joanes, nossa terra.
Quando o questiono sobre a sua postura de auto isolamento e se tem amigos em Aldeia de Joanes, responde-me que “ todas as pessoas que olham para o rosto de Cristo, pobre, esfarrapado, necessitado, dorido, excluído e marginalizado, são minhas amigas.”
O Ex – maquinista, José Alberto Tavares, continua a conduzir a máquina da sua vida em linhas férreas repletas de obstáculos.

António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Outubro/2014