BARCO – RECORDAÇÕES DE UM CARTEIRO

Nasceu há quase noventa anos no meio rural, junto às margens do Rio Zêzere, na linda aldeia do Barco (Covilhã), com a Serra de Estrela a norte, a sua fronteira natural. Nasceu a 22 de Abril, mas só celebra o seu aniversário no dia 25 de Abril.
Milhares de portugueses, por esse país fora, roíam as unhas, ao ver na TV os quartos-de-final do Campeonato Europeu. O meu anfitrião estava sentado a uma mesa, conversando e espreitando de vez em quando para o pequeno ecrã. A equipa das Quinas estava a jogar contra a Polónia e o jogo não estava de feição para as cores nacionais. Um seu conterrâneo, homem de grande fé, não se cansava de afirmar, “ vamos ganhar”. Finalmente respirou-se fundo e lá fomos para as meias-finais.
O nosso Homem é de uma família de agricultores, dos cinco irmãos apenas sobrevive uma irmã, atualmente com noventa e três anos.
Além das tarefas agrícolas, cedo escolheu a profissão de sapateiro, a fim de conseguir melhor sustento familiar. Viviam-se tempos difíceis, as famílias não tinham dinheiro e as bocas a alimentar eram muitas. Nunca esteve virado para as terras estrangeiras, entendia que em Portugal também teria algum futuro.
Só aos vinte e oito anos conseguiu entrar para carteiro dos CTT. Durante cinco anos não conseguia fazer mais do que treze dias por mês, o que o impedia de receber o abono de família para os filhos. Com a solidariedade de um companheiro da zona de Caria, conseguiu trabalhar mais dias e, assim, já não lhe cortavam esse benefício social. Naquele tempo, “ havia amizade, interajuda e solidariedade.”
A primeira etapa percorrida abarcava as povoações de Casegas, Aldeia de Joanes, Aldeia Nova do Cabo (numa casa brasonada, à saída para o Souto da Casa, davam-lhe um lanche) e Fundão.
Na segunda etapa, seguiu-se Aldeia do Carvalho, onde trabalhou cerca de doze anos, sendo obrigado a carregar com mais de trinta quilos de correio. Um dia revoltou-se por considerar desumano carregar sozinho com tamanha carga, atitude que lhe custou uma punição de dois dias sem vencimento. Sentindo-se injustiçado, recorreu para a Inspeção dos CTT de Castelo Branco, que lhe repôs o vencimento, anulando o castigo.
Distribuia cartas e encomendas, fazia determinadas cobranças nas localidades e, no final da sua carreira, foi o primeiro a conduzir uma carrinha dos serviços postais, deslocando-se a Manteigas, Vale Formoso, Orjais, Verdelhos, Valhelhas, Penhas da Saúde.
Convidado a referir os aspetos mais positivos da sua atividade profissional, recorda a entrega de cartas com mensagens de amor e felicidade, e os aerogramas dos muitos militares no Ultramar. Acontecia que muitas pessoas lhe pediam para ler as cartas, pois uma grande maioria era analfabeta. Lia com orgulho as boas notícias e com pesar as más notícias: “a nossa missão era dignificada pelas pessoas, tinham-nos muito respeito e amizade. Se a carta cheirava a morte ou a desgraça, éramos os primeiros a dar uma palavra de conforto, esperança e solidariedade.”
Na maior parte dos dias percorria a pé doze quilómetros e, apesar dos equipamentos, sofria com a chuva, a neve, o gelo, o calor. Entregava muito correio nas quintas, que não tinham caixas para o receber, pelo que era necessário levar uma corneta e tocá-la bem alto. É esse instrumento, de resto, o logotipo dos CTT.
Uma vez na Quinta das Rosas, na Covilhã, um cão deitou-lhe os dentes à mala cinzenta do correio. Além de a rasgar, ainda lhe danificou várias cartas: “se tem ido às pernas do carteiro, a Quinta das Rosas passaria a chamar-se Quinta das Dores”.
“Uma vez entreguei uma carta ao filho de um barbeiro, que andava desavindo com o pequeno por não tolerar “coisas de saias”. O corno do barbeiro, com a navalha de fazer barbas, queria cortar-me o pescoço”.
Anualmente, o nosso Homem tem um encontro com carteiros reformados, alternado o local entre o Paul, terra de carteiros e cantoneiros, e a Covilhã. Este ano foi no Paul e uma senhora disse ao jovem carteiro: “o anel de casamento a si o devo, há muitos anos entregou-me a encomenda do meu namorado, hoje marido.”
O nosso Homem gostou muito da profissão de carteiro porque “convivi com muitas pessoas, dei muitos conselhos amigos, animei muita gente e também distribuí muita felicidade. Senti-me completamente realizado nessa missão, que também me proporcionou várias regalias sociais. Havia colónias de férias para os nossos filhos, na serra ou na praia. Cada filho que nascesse tinha direito a enxoval, havia subsídio de amamentação e boa assistência médica em todas as especialidades”.
Do Barco recorda muitas histórias, quando não havia ponte no Rio Zêzere e estavam isolados do mundo. Aos dias de hoje olha com pessimismo para o seu futuro: “não há crianças, não há trabalho, não há fábricas, os velhos morrem e os mais novos têm de fazer as malas.”
Jerónimo Serra Mendes Delgado, carteiro durante trinta e quatro anos, tem a consciência tranquila de quem levou sempre a Carta a Garcia.
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Julho/2016

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