BISMULA – TOPONÍMIA

Há muito tempo que as nossas aldeias começaram a sinalizar as suas ruas, largos, praças e becos, de acordo com as suas tradições, costumes, religiosidades, profissões, edifícios e pessoas ilustres. A minha aldeia é das poucas excepções que, no seu mapa toponímico, não tem uma figura destacável.

A publicação do Código Administrativo no século XIX deu poderes e incumbência às Câmaras Municipais para atribuir nomes às artérias das suas urbes, embora em muitos casos a resistência popular se tivesse imposto, respeitando a tradição.

Na minha aldeia, desde tempos ancestrais, que os campos agrícolas eram baptizados por lendas, símbolos religiosos, morfologias, rochedos, ribeiras…

No sector habitacional, dizíamos que vivíamos ao pé da Igreja, da Escola, da Santa Bárbara, do Tio Serrote, do Albertino Vaz, da Senhora Antoninha, e assim nos orientávamos.

Actualmente as ruas da minha aldeia já estão sinalizadas. Através de um breve estudo, verifica-se a evolução de um Povo, quer nas formas de vida, quer na organização social e política.

A toponímia é a ciência do espaço que procura explicar a origem de um lugar, o que se esconde por trás de um nome e a sua história. Sempre que passamos por um lugar sinalizado, algo de histórico tem.

Rua da Procissão: Tinha uma forte matriz religiosa. Funcionava como percurso de castigo e expiação. Nos finais de missas dominicais, os ladrões transportavam parte dos produtos roubados para os devolverem aos seus proprietários, conforme decisão da regedoria. Não conheço mais nenhuma Rua da Procissão no País que servisse de punição aos ladrões, que eram assim envergonhados publicamente (o que em princípio os impedia de voltar a cometer furtos) e se redimiam, devolvendo o produto furtado.

Rua do Enchido: Desemboca nos melhores lameiros de pastagens e fenos para animais. Os enchidos são produtos das matanças dos animais, principalmente suínos, que a maior parte das famílias criavam para ter conduto todo o ano. Não havia luz eléctrica e os frigoríficos eram uma miragem.

Rua do Saco: O Povo assim a designou porque não tinha saída. Era um saco. Ao fundo tinha um armazém de material de guerra para ser contrabandeado e utilizado na Segunda Guerra Mundial.

Rua de Nossa Senhora do Rosário: Em homenagem à Padroeira da Freguesia, festejada inicialmente em Outubro e, mais tarde, com a emigração dos anos sessenta, passou a ser celebrada em Agosto.

Rua do Chafariz: Começa nos dois bebedouros públicos e termina na mais alta colina Bismulense, onde funcionou um forno, e na Casa da Irmã Célia Martins Salgueira, Hospitaleira do Sagrado Coração de Jesus, um “centro de saúde”, onde duas vezes por semana recebia uma enfermeira, para serviços primários de saúde.

Rua e Largo da Relva: O coração do mercado mensal com as pedras fixas dos mercadores, onde expunham os seus produtos, carnes, pão, cereais, legumes, frutas, roupas…. Tinha um poço de roldana para abastecer os moradores e matar a sede aos comerciantes e compradores. Ali cresci com os meus irmãos e brinquei com a comunidade itinerante de famílias ciganas.

Rua de Santa Ana: Quantos de nós não a percorremos com muita fé em anos de seca? Íamos buscar a Santa Ana à sua Capelinha, suplicando-lhe chuva, muita chuva.

Rua de S. José: Esposo da Virgem Maria, pai putativo ou “emprestado” do Menino Jesus, carpinteiro de profissão em Nazaré.

Rua dos Emigrantes: Uma homenagem aos habitantes que um dia se viram forçados a abandonar os seus bens à procura de melhores locais de sobrevivência.

Rua das Veigas: Rua que nos conduzia para os terrenos de maior produtividade agrícola, batatas, feijão, milho, abóboras, legumes…

Rua da Santa Bárbara: Onde se comercializavam toda a espécie de animais: vacas, bezerras, ovelhas, cabras, mulas, cavalos, burros… Era a meta final das burricadas, corridas de asnos, das brincadeiras da Escola Primária, dos Bailes e da Morte do Galo. Ali se situa a Capela de Santa Bárbara, em paredes graníticas, construída pelo oiro do Brasil. Hoje funciona como Capela Funerária, onde outrora os pobres em catre partiam para a eternidade.

Ali nasci e vivi com dois irmãos mais novos.

Rua do Forno: Lá está ainda o forno comunitário, património comum que ainda resiste à destruição.

Rua das Lages: Lages graníticas onde se secavam e malhavam os cereais, como centeio ou milho…

Rua de S. Pedro, de S. João e de Santo António: Testemunhos da religiosidade popular de um Povo.

Rua dos Pinhos: Atravessava paisagens de frondosos pinheiros que já não existem, caminhos que nos levavam para a Nave e Ruivós.

Largo da Praça: Onde todos os anos se fazia o mastro, um grande pinheiro revestido com rosmaninho e bandeirinhas de papel, encimado por uma boneca de farrapos. Nas festas de São João deitava-se-lhe fogo com o aplauso do Povo. Vi naquela Praça, pela primeira vez, um espectáculo de circo com palhaços pobres. Ali vivia o Joaquim Serrote, naquela época o homem mais conhecido no mundo do contrabando.

Rua da Casa Paroquial: Onde se situava a residência do pároco, o nosso centro cultural, lia-se e ouvia-se a rádio com uma bateria de automóvel.

Largo da Ladeira: Debaixo das amoreiras, as nossas avós amassavam o linho, para mais tarde fazerem camisas, toalhas e lençóis. Às vezes davam-se ali uns passos de dança, contra a vontade do senhor prior. Ao avistá-lo, vindo de Badamalos, todos fugiam e se escondiam. Ali ao lado nasceu o meu Pai, José Maria Fernandes.

Largo da Igreja: Local de maior simbologia, ali passávamos a caminho da Igreja, nos baptismos, nas primeiras comunhões, profissões de fé, crismas, casamentos e despedidas para a eternidade, ali rezávamos, ali nos aquecíamos ao madeiro de muitos natais.

Como se vê, não encontramos na toponímia bismulense nomes de figuras ilustres da terra, de profissões ou dos muitos actores populares de teatro, que estão bem presentes na História da Bismula, escritos com letras de ouro, que ninguém apagará.

Só morrem as Terras que não têm HISTÓRIA. Passam os Presidentes de Junta, os Generais, os Capitães, os Alferes, e o Povo continua…

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Agosto/2018