Celebrar o Natal dentro do arame farpado

Estava-se no tempo das chuvas que a mãe natureza africana nos oferecia. Felizmente, talvez por ser a grande noite, a noite da Boa Nova, não choveu. Em contrapartida, não muito longe, chegava-nos o eco de tempestades, tormentas motivadas por políticos ou responsáveis por movimentos de libertação, que nunca se sentavam à mesa do diálogo. Se assim procedessem, teriam calado as armas de guerra, os obuses 8-8 e 14, os morteiros 81 e 82, os canhões sem recuo de 5,7, os foguetões terra-ar, e cancelados milhares de operações militares, evitando-se feridos e mortos dos dois lados, companheiros de escola, da universidade, do trabalho.

Na Noite da Luz, com um presépio improvisado com ramos de palmeira junto ao altar, o Capelão Militar celebrou a Festividade do Nascimento do Menino Jesus, rodeado por um milhar de homens de camuflado. Nas periferias do Quartel, a segurança estava reforçada nos postos de vigilância. Estava-se em alerta máximo, nenhum militar era autorizado a vir à Metrópole ou a sair da Unidade Militar.

O Capelão, com base no texto de Isaías – “o Povo que andava nas trevas viu uma grande luz, para aqueles que habitam nas sombras da morte, uma luz começou a brilhar…”, – dava Glória a Deus e Paz na terra aos homens de boa vontade. E continuou dizendo que somos construtores de pontes, de estradas, de aquartelamentos, de escolas, de casas de culto, “vamos pedir para aqueles que têm poder para que construam a Paz” (por sinal em Lisboa decorriam negociações, mas não houve coragem política nem militar para se avançar.)

Antes do ritual do beijo ao Menino, muitos militares retiraram do camuflado um crucifixo, uma medalha ou o terço, oferecidos pela mãe, noiva ou mulher aquando do embarque, deram um ósculo de saudade, de amor, de dor e sofrimento. Sentíamo-nos mais próximos de um Cristo dorido, sofredor, da Via Sacra e do Calvário do que do berço natalício. Todos beijaram o Menino; hoje, por questões de contágio de doenças, a maioria dos católicos já não o faz, embora o Papa Francisco o faça, sem qualquer problema e não consta que tenha sido contagiado.

Depois da Ceia Eucaristia, seguiu-se a Ceia de Natal, desta vez com uma particularidade: não se comeu bacalhau, apenas batatas com couves e peixe da bolanha…em outras unidades a ceia foi uma ração de combate e uma laranja. Mastigava-se com sabor a medo, a angústia, a revolta, com o pensamento na ceia dos familiares residentes no Minho, nas Beiras, em Trás-os-Montes, no Alentejo, no Algarve…ou junto ao madeiro. Para esquecer tantas recordações, a maioria bebia em excesso, um vinho de má qualidade fornecido pela Manutenção Militar.

A noite encerrava-se com um programa de variedades com artistas do Batalhão, com muita música e jograis (estes aproveitavam a oportunidade para irónica e sarcasticamente fazerem as críticas à vida militar, ao regime…)

Abriu-o o Conjunto Musical Militar, tocando e cantando o Hino da Unidade, secundado por quase um milhar de militares concentrados no recinto desportivo. Um Hino de grande importância, só suplantado pelo Hino Nacional.

O Comandante era um Tenente Coronel bem cheio de carnes e medroso (quando o General, Comando Chefe e Governador lhe telefonava, fazia diversas vénias ao telefone; católico convicto e centralizador, não havia documento que não tivesse a sua assinatura – B.P.-, a começar pela simples missiva de um nativo). Muitas vezes veio a ideia de que estaria associado a alguma petrolífera, com ações em qualquer banco, mas felizmente só tinha o seu vencimento militar. Num discurso patriótico e inflamado, enalteceu o espírito de sacrifício dos militares ao serviço da Pátria em Terras do Ultramar. Quem serve esta Unidade Militar não é um combatente da linha da frente, mas não se vence uma batalha sem retaguarda. Somos essa retaguarda, com as ações indispensáveis para não faltar a luz, a água, e todo o apoio logístico nas obras em todos os setores. Apelou para a continuação desse esforço, de dedicação e trabalho, para que não faltassem as necessidades básicas aos diversos aquartelamentos espalhados por todo o território africano. Somos uma Unidade do Trabalho, com diversas oficinas e obras em curso.

Ainda não tinha acabado de discursar quando, do meio da multidão soldadesca, se ouviu o rebentamento de uma granada ofensiva, causando a maior das confusões, o caos. Veio à mente um possível ataque do IN. Registaram-se corridas para os abrigos, para debaixo das mesas, todos se deitaram e procuraram refúgio com os consequentes arranhões e outros ferimentos mais graves.

Afinal um soldado embriagado lembrara-se de parar o discurso do Comandante com uma granada, revoltado porque há dois natais não via a mulher e os filhos. Como oficial de dia, coube-me a ingrata tarefa de o levar para uma improvisada cela carcerária, dando-lhe um maço de tabaco e a esperança de que nada de grave lhe iria acontecer. Antes de me despedir, aliviou o estômago, vomitando muito vinho misturado com pedaços de batatas e couves mal mastigadas.

E a Festa de Natal acabou. Se o IN fizesse um golpe de mão, levaria a maioria dos militares, pois estava ébria e o pessoal de serviço – Oficial de Dia, Oficial de Prevenção e pelotões de segurança e de prevenção -, não tiveram mãos a medir para canalizar e encaminhar o pessoal para os seus locais de pernoita e consolar tantos militares.

Com tantas confusões, com tantas aventuras e desventuras, todos ficaram com a certeza de que naquela noite o Menino de Jesus não nasceu.

 Quem estava escalado para o serviço de vigilância nunca mais esqueceu esse conturbado Natal, rodeado de arame farpado.

 

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes