“ É preciso defender os pobres, não defender-se dos pobres; é preciso servir os fracos, não servir-se dos fracos.”

Papa Francisco

Anoitecia numa tarde muito fria. Do lado norte, já mal se vislumbrava a Serra da Estrela com o seu manto de neve. No poente, castelos de nuvens, uns com cores escuras do breu e do medo, outros lambidos com os últimos raios de sol assemelhavam-se a labaredas de fogo, daquelas que antigamente ilustravam os nossos catecismos e associávamos ao inferno. Se o Diamantino Gonçalves – um dos melhores fotógrafos do país -, estivesse ali, a sua objetiva teria registado aquela espécie de Juízo Final.

No exterior da sua moradia, o reformado-agricultor ultimava serviços para se recolher ao calor da lareira. Tinha regressado de um funeral, onde prestara a última homenagem a uma senhora quase centenária, que dedicou muito da sua vida aos outros, de pequenos agricultores a jovens que não tinham dinheiro para pagar os estudos. Estava em gestão emocional quando se aproximaram dois jovens, um de estatura para jogar na NBA, outro de estatura meã, a lembrar o auto-retrato que Bocage fez num dos poemas. Bem apresentados e portadores de pastas, traziam um computador e o ar de quem pertence a uma daquelas seitas, para as quais anda tudo enganado e estão a chegar os fins dos tempos.

Afinal os dois jovens eram angariadores de clientes consumidores para uma empresa de energia, provavelmente uma dessas que amanhã estará a pedir insolvência e a mudar o capital para qualquer paraíso fiscal.

Apresentaram as suas propostas comerciais, desde logo recusadas, e como trabalham à comissão ficaram de mãos vazias. O reformado-agricultor achou por bem, para não cometerem a imprudência de voltar, de os alertar para a presença de uma cão sem escrúpulos que andava à solta nas imediações: “se a integridade física é importante para vós e não querem esfarrapar uma perna, não devem voltar a estes territórios.”

O mais alto respondeu que “sem riscos não há clientes, sem perigos não há dinheiro para nada.”

O mais baixo, natural de Braga, ganhou coragem e disse ao reformado-agricultor: “temos fome, se o senhor nos desse de comer…”

O reformado-agricultor, ao ouvir este apelo, franqueou logo a porta da cozinha e colocou-lhes em cima da mesa tudo o que tinha à disposição. Os jovens estavam realmente com fome. Já de barriga cheia, agradeceram e saíram, levando duas garrafas de vinho da colheita caseira. O reformado-agricultor ficou preocupado com a situação destes jovens, explorados por uma empresa da treta, sem contrato de trabalho, sem segurança social, sem sindicato e sem recibo verde. Talvez passem recibo amarelo, a cor da fome lá na minha terra.

No dia seguinte à tarde, o reformado-agricultor confraternizava com um condutor que lhe dera boleia, quando alguém lhe bateu à porta. Era um ex-presidiário, com sessenta anos, mais de vinte e cinco em penas, especialista no assalto a ourivesarias e campeão olímpico de fugas. Observado com atenção, parecia a imagem sagrada de S. José, de fartas barbas brancas. Recebe o subsídio de reinserção social, canta uns fados vadios numa taberna da sua terra e lá vai sobrevivendo, porque já não tem forças para mais assaltos. O reformado-agricultor percebeu logo que S. José estava com fome. Ele, muito agradecido, prometeu voltar.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Fevereiro/2015