I – Domingo da Quaresma

“Esteve no deserto …”

 

            O Espírito Santo impele Jesus para o deserto e aí permanece com Ele. Durante quarenta dias, conduzido pelo Espírito Santo, Jesus escuta a voz de Deus e dialoga com Ele. Em íntima comunhão com o Pai e com o Espírito Santo, Jesus vai captando, interiorizando e assumindo o alcance e as exigências da sua missão entre os homens.

            No deserto, lugar privilegiado do encontro com Deus, Jesus também encontra o diabo, que O submete a “toda a espécie de tentação”. Isto significa que o diabo esgotou todas as possibilidades de fazer sucumbir Jesus. As três que o evangelista descreve constituem a síntese e, ao mesmo tempo, revelam o âmbito de todas as tentações.

            Na primeira e terceira, o diabo põe em causa e procura lançar a confusão em Jesus quanto à sua filiação divina. Para provar que é Filho de Deus, Jesus deve fazer um milagre, ou seja, transformar as pedras em pão. Estamos perante a tentação de colocar o seu poder divino ao serviço das suas necessidades humanas (primeira tentação). Depois, o próprio Deus deveria provar que Jesus é seu Filho, fazendo algo de extraordinário em seu favor. É a tentação de tentar a Deus, de O pôr à prova, de O condicionar, de O submeter aos caprichos e arbitrariedades dos homens (terceira tentação). Na segunda tentação, o diabo propõe a Jesus que renegue Deus e que aceite apenas a sua condição humana, prometendo-lhe em troca o poder sobre os reinos deste mundo. A tentação de negar, trocar, ocupar o lugar de Deus.

            Jesus não cede às propostas do diabo. Responde a todas com a palavra da Escritura, ou melhor, com a palavra de Deus. Vence o diabo porque se encontra em plena comunhão com Deus – a sua vontade é fazer a vontade do Pai. Jesus sabe que o caminho da sua missão não será o do triunfalismo, o caminho do poder, da riqueza e do esplendor, mas sim o caminho da humildade e do desprendimento, do amor e do serviço, da renuncia e da cruz de cada dia. Vencendo “toda a espécie de tentação”, superando um exame exaustivo, Jesus mostra que está preparado para iniciar a sua missão e para a realizar, na íntegra e com fidelidade, até ao fim.

            “Esteve no deserto …” O deserto é o lugar onde é mais fácil encontrar e ouvir Deus. Mas é também lugar de tentações, de lutas e de tensão. Isso mesmo aconteceu com o povo de Israel, quando viveu no deserto, ao longo de quarenta anos, desde que saiu do Egipto até à sua chegada à terra prometida. No deserto, Deus faz sentir a sua presença no meio do povo, quer através da nuvem luminosa quer da Tenda do encontro; faz ouvir a sua voz e manifesta-lhe os seus desígnios, dirigindo-lhe a palavra, sobretudo pela mediação de Moisés; e a sua relação com o povo atinge o ponto culminante na aliança do Sinai. Porém, perante as dificuldades inerentes à vida no deserto (a falta de pão, de carne e de água), o povo murmura contra Deus, perde a confiança nele, sente-se tentado a voltar para trás e desistir do caminho do futuro, chega mesmo a fazer uma imagem de Deus, o bezerro de ouro. O povo alcança a verdadeira libertação, não tanto quando sai do Egipto e atravessa o mar Vermelho, deixando os opressores para trás. Mas, muito mais, à medida que se vai libertando interiormente (o homem é o pior opressor de si mesmo) e se abre à graça de Deus.

            “Esteve no deserto …” Também nós, no “deserto” do nosso mundo, experimentamos todo o tipo de tentação. A tentação de nos centrarmos nos bens materiais, esquecendo ou negligenciando a nossa dimensão e necessidades espirituais. A tentação de centrar tudo em nós, subordinando Deus e os outros aos nossos interesses, ambições e vaidades. A tentação de reduzirmos os nossos horizontes existenciais ao aqui e agora, o que nos leva a relativizar ou desprezar os valores humanos e as normas morais.

            Nestas circunstâncias, devemos ter a capacidade e ousadia de fazer “deserto”, silêncio interior, entrar no mais íntimo de nós mesmos, de modo a perscrutar a palavra e captar a luz de Deus. O nosso baptismo, qual travessia do mar Vermelho, marca o início da nossa libertação e vida nova. Porém, o caminho da conquista da liberdade dos filhos de Deus prolonga-se, numa constante luta interior só possível com a ajuda do Espírito Santo, por toda a nossa vida. Só assim, plenamente livres, chegaremos ao fim do deserto, à verdadeira terra prometida, a pátria que está no Céu.

 Pe. José Manuel Martins de Almeida