ITINERÁRIOS

Não posso adiar mais a ida à Sintra da Beira Baixa.

Consulto os horários dos transportes públicos e, na digestão do almoço, sigo para Alpedrinha, na companhia de quatro idosos e dois jovens. Em frente à Escola Profissional do Fundão, vejo dois grupos de estudantes separados: um negro e um branco. Será uma mera casualidade?

No autocarro, enquanto os jovens se distraem com as modernices da tecnologia audiovisual e os outros passageiros comentam a Festa dos Chocalhos do último fim-de-semana, eu divirto-me à grande e à francesa com a leitura das crónicas de Rui Pelejão, reunidas no livro “OLHOS CHEIOS DE FUMO”. Para atestar a sua actualidade, cito um texto de 2005: “Por cá, o que mais se lavra são autos e chamas. E agora agitam-se as consciências funestas, os analistas-incendiários e os especialistas, prontos para fazer o enésimo diagnóstico e a tretagésima terapia. Vai ser lume brando, porque o grande problema dos fogos e de tudo o resto neste país, é que a memória é mais curta que um fósforo.”

Quando a viagem se aproxima do fim, vejo esta triste realidade: a ardida encosta sul da Serra da Gardunha… Salvou-se a capela do Anjo da Guarda… Já não vejo o guardador da cabrada, com quem passei uma tarde, acabando por contar parte da sua vida num texto. Já não vejo as árvores que nos deram sombra, já não oiço o pífaro da madeira do sabugueiro do solitário pastor… Já não vejo o chamamento das suas cabras, que tratava com disciplina e carinho… O autocarro acelera, tem de cumprir horários, o seu itinerário abrange Fundão, Alpedrinha, Vale de Prazeres e Orca.

À hora marcada, desembarco no Terreiro de Santo António em Alpedrinha, debaixo de forte calina e ainda com vestígios dos “CHOCALHOS – FESTIVAL DOS CAMINHOS DA TRANSUMÂNCIA”. Ao lado decorrem obras numa casa que se esforça por respeitar a arquitectura local.

Sigo o meu caminho e encontro uma pessoa assistida de Vale de Prazeres. Com mágoa informa-me do falecimento do seu irmão. Dirijo-me para o Lar da Misericórdia, onde recolhi tantas histórias, e detecto as muitas ausências e a situação física e psicológica debilitada de alguns companheiros. Vou ao encontro da D. Ana, ontem como hoje, com queixas na barriga, inteiro-me que o Senhor António já não vai à Igreja rezar o terço, mas que o Senhor Maneta, quase centenário, mantém a boa-disposição. Não falta a sabedoria da D. Pilar e do seu marido António Brás Ribeiro… Uma psicóloga ocupa os utentes com várias actividades e as Senhoras Auxiliares continuam a revelar-se sempre disponíveis para ajudar. Tenho uma grande admiração por esta missão, sei que não é fácil.

Falando-se em Transumância, alguém pergunta pelo pastor das almas, obtendo como resposta: “no Natal e na Páscoa passa aqui, por vezes às quartas-feiras, nos restantes dias anda à procura de ovelhas desencaminhadas na Serra.”

Passo pela única Papelaria e na porta leio o aviso: “fomos almoçar”. Adiante vejo uma cabeleireira à espera de clientes, enquanto alguns jovens em passo apressado vão à procura de conforto alimentar. Na esplanada do café do profeta, estudo alguns rostos, todos desconhecidos. Onde andarão os meus conhecidos? No Largo, onde existia uma habitação em derrocada, ergue-se o Posto de Turismo de Alpedrinha, um apresentável espaço.

Mais à frente, um amigo sincero, com quem partilhei encontros, conversas e escritas, não me reconhece. Faz um esforço ansioso e titânico para saber com quem está a falar, mas não chega lá. É triste, mas pode acontecer a qualquer pessoa.

A caminho da Funerária passo pela “Pensão Clara – Frangos Assados aos Sábados e Domingos”… Parece que os mortos fizeram greve e também na Funerária há um aviso na porta: “grande promoção de flores, leve cinco caixas e pague quatro.” Se alguém estiver com os pés para a cova, pelo menos em flores fica mais barato em Alpedrinha… Impávida e serena está a estátua do D. Jorge da Costa – Cardeal de Alpedrinha -, que já faleceu há mais de 500 anos em Roma.

Graças à atenção e delicadeza de uma enfermeira, resolvo apanhar boleia para o Fundão. Diz-me que a última vez que me viu eu estava entubado num corredor das urgências hospitalares: “É bom conversar com um Homem Ressuscitado”.  

À chegada ao Fundão, recebo um livro do Padre Dâmaso Lambers com o título “Jesus é fantástico!” Deito-me na cama, coloco a máscara de oxigénio e adormeço beatificamente.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Setembro/2018