O segredo da vida do cristão está na intensidade da sua fé em Cristo. A fé, muito mais que “uma doutrina, uma sabedoria, um conjunto de regras morais, uma tradição”, é, como sublinha o Instrumentum Laboris do Sínodo sobre a Nova Evangelização (18), “um encontro real, uma relação com Jesus Cristo”. Bento XVI, na encíclica Deus é Amor, ensina que “no início do ser cristão … está o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE 1). O Papa continua: “no seu Evangelho, João tinha expressado este acontecimento com as seguintes palavras: “Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único para que todo o que nele crer (…) tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Acontecimento, Pessoa e amor de Deus aparecem indissociáveis. Acreditar em Cristo é acreditar no grande amor de Deus. E esse crer garante ao homem a vida eterna. O encontro com Jesus, que é encontro e abertura ao amor de Deus, realiza no homem uma profunda renovação interior e, ao mesmo tempo, torna-o capaz de fazer coisas novas (Cf Instrumentum Laboris 19).
Jesus, a sua pessoa e a sua vida, é inseparável da sua missão: anunciar e tornar presente o reino de Deus no mundo dos homens, de modo a fazer deste mundo o que Deus sonhou para ele. Por conseguinte, quem acredita em Cristo reconhece e assume que Ele é que deve reinar até conduzir o mundo e a história à sua plenitude. São Paulo, o apóstolo radicalmente apaixonado e conquistado por Cristo, afirma claramente na Primeira Carta aos Coríntios: “É necessário que Ele reine …” (1Cor 15,25). Na mesma linha, o Senhor D. João de Oliveira Matos escolheu para lema da sua vida e divisa da sua Obra: “É preciso que Jesus reine”.
Esta intuição da fé, assumida como uma missão, explica a vida e a Obra do Senhor D. João. Antes de mais, ele compreendeu e sentiu a necessidade de estabelecer uma íntima relação com Cristo e de se identificar com Ele, para que Ele pudesse reinar na sua vida e, através dele, chegar à vida dos homens. Daí, o longo tempo que passava em oração, a importância dada à palavra de Deus e a centralidade da Eucaristia (sacramento e adoração). O Senhor D. João ensina, com o exemplo da sua vida, que Jesus só pode chegar à vida dos homens por meio daqueles que O conhecem de verdade e vivem em estreita comunhão com Ele.
Depois, ele compreendeu que o reino de Deus é um projecto que abrange e compromete todos os homens e mulheres. Deve chegar a todos, e aqueles que já o acolheram devem sentir como missão levá-lo mais longe e a mais pessoas. Consciente desta exigência da fé, quis comprometer neste projecto do Reino os homens e mulheres “de tanta grandeza moral” que foi encontrando nas paróquias da diocese, durante as suas visitas pastorais. Com o objectivo de aproveitar essas “almas apaixonadas de Jesus”, deu início à Liga dos Servos de Jesus. Quis que estes homens e mulheres, permanecendo nas suas terras e realizando a sua missão no mundo, vivendo o ideal do reino (é preciso que Jesus reine), contribuíssem, como “fermente activo”, para “a renovação da fé”.
Impulsionando e estimulando a santificação e a missão dos leigos, o Senhor D. João não deixava de ter presente quanto é insubstituível o papel do clero. Além disso, sabia muito bem como muitos padres viviam numa situação deplorável, a nível moral e espiritual. Nesse sentido, para além da atenção e solicitude com que os tratou nas suas visitas pastorais, determinou que os membros da Liga dos Servos de Jesus dessem prioridade à oração pelos sacerdotes, dedicando-lhe, especificamente, um dia por semana. Quis ainda que colaborassem estreitamente com eles na pastoral paroquial.
Plenamente consciente de que Jesus é que deve reinar, deu à sua Obra o nome de Liga dos Servos de Jesus. Servos de Jesus! Jesus é que é o protagonista, Ele é que deve ser visível, Ele é que deve chegar à vida e ao coração dos homens. O servo, consciente de que é servido e amado por Aquele a quem serve, deve sentir-se impelido e animado a consagrar-Lhe inteiramente a sua vida, ou seja, a viver segundo os valores e os desafios do Reino de Deus. Por conseguinte, o servo de Jesus, seja ele quem for e seja qual for a sua missão, jamais se deve aproveitar de Cristo para conseguir vantagens humanas. Não se pode ser servo e ter pretensões ou comportamentos de senhor.
“É preciso que Jesus reine”. Quem assume seriamente este lema, tem seguramente um coração universal, aberto a todo o mundo, desejoso que a palavra e o amor de Jesus cheguem a todo o lado. Por outras palavras, consegue pensar e amar para além da sua terra, ver para além da torre da sua igreja. A Obra do Senhor D. João espalhou-se, durante a sua vida, por toda a diocese da Guarda e saiu para outras dioceses de Portugal. Agora, ela chegou a Angola. Este movimento de ver mais além e ir mais longe alimenta a esperança e garante o futuro.

Com o Concílio Vaticano II, a Igreja quis repensar-se a si mesma (LG), o modo como celebrar a sua fé (SC) e a sua missão no mundo (GS), à luz da Palavra de Deus (DV). A palavra de Deus é Jesus Cristo. E Jesus Cristo é “a luz dos povos”, como faz questão de recordar a Constituição conciliar sobre a Igreja (LG 1). Hoje, é através da Igreja que Jesus faz chegar a sua luz – a luz da verdade e do amor de Deus – à mente e ao coração dos homens. Mais em concreto: os membros da Igreja, os cristãos, lá onde vivem e pelo modo como vivem, pelas obras que realizam e o testemunho que dão, pela entrega e fidelidade à sua missão, seja ela qual for, devem irradiar a luz de Cristo, mostrar que Cristo vive/reina neles e faz toda a diferença nas suas vidas.
“É preciso que Jesus reine”. Como viver este ideal e este desafio no mundo e na Igreja do presente e do futuro?
O mundo, sobretudo a chamada sociedade ocidental, esquece ou expulsa ou permanece indiferente a Deus; contraria e procura eliminar todas as influências de Cristo e do seu Evangelho; nega ou anestesia a dimensão espiritual do homem e a sua vocação à eternidade.
Por sua vez, a Igreja vive uma profunda crise interna. Esta é, antes e acima de tudo, uma crise de fé. Na carta Apostólica Porta Fidei, o Papa alerta para esta realidade: “Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora um tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado” (PF 2). Depois, temos uma Igreja em que há muito activismo e frenesim pastoral em detrimento da vida interior; que privilegia a doutrina e os ensinamentos em detrimento da experiência e testemunho de vida; que olha e fala mais para fora do que para dentro; que se preocupa mais em encontrar e apresentar soluções para os problemas sociais do que em reconhecer e procurar soluções para os seus problemas; que se pronuncia sobre tudo e fala pouco de Deus ou deixa transparecer pouco Deus nas suas palavras; que tem muitos dos seus padres cansados e stressados, desiludidos e desencantados ou acomodados e descomprometidos.
“É preciso que Jesus reine” neste mundo e nesta Igreja. Hoje, tanto ou mais que no tempo do Senhor D. João, o mundo e a Igreja têm necessidade de almas santas e apaixonadas por Jesus. Os servos devem ser pessoas seduzidas e conquistadas por Cristo. Quem é servo de Jesus, se o é por vocação, só o poder ser com radicalidade e com paixão. Deve ser alguém que, naquilo que faz, no cumprimento dos seus deveres quotidianos, deixa transparecer a sua fé e o seu amor, ou seja, as pessoas devem poder dar conta que ele acredita e ama.
Por isso mesmo, o servo de Jesus precisa renovar continuamente a sua fé e viver, sempre com maior entusiasmo e fidelidade, a espiritualidade própria do discípulo. Antes de mais, deve ter plena consciência que não pode ser servo se não for discípulo. E deve ter como referência Maria: Ela foi por excelência a serva de Deus e, ao mesmo tempo, foi a primeira e mais fiel discípula de Jesus.
Por conseguinte, mesmo no tempo da pressa e da falta de tempo, é necessário ter tempo para, sem pressas, estarmos com Jesus e aprofundarmos a nossa relação e intimidade com Ele. É preciso estar com Jesus, escutar e saborear a sua palavra, a sua vida e o seu amor, dialogar com Ele, deixando que Ele nos ilumine e esclareça, que nos introduza nos mistérios e segredos de Deus. Sem esta relação pessoal, não chegamos à identificação com Ele nem, consequentemente, Ele pode agir em nós e através de nós.
O nosso trabalho, tudo o que fazemos aos outros, se o fazemos por amor de Deus, também é oração e meio privilegiado da nossa santificação. No entanto, se faltam momentos, suficientemente longos, de oração – tempo reservado explicitamente ao encontro com Jesus – o que fazemos é estéril e inútil, não contribui para a nossa santificação nem para a santificação dos homens, para o crescimento do reino de Deus. Na verdade, não conseguimos testemunhar Deus ou deixar passar Deus através da nossa vida, se Deus não viver em nós, se Ele não nos for familiar.
Este tempo de crise económica é um tempo de grandes preocupações sociais. A Igreja não é nem pode ser alheia a esta problemática. As obras da LSJ situam-se nessa linha da missão da Igreja. De resto, estas obras sociais são uma exigência do amor de Deus. Porém, se elas não são realizadas à luz da fé e por amor de Deus, se não se dá às pessoas beneficiadas por elas a oportunidade de experimentarem o amor de Deus, essas obras não constituem actos de verdadeira caridade.
Muitas vezes tem sido lembrado que esta crise, mais e antes de ser uma crise económica e financeira, é uma crise de fé em Deus. Por isso mesmo, o que mais nos é pedido e legitimamente é esperado de nós, o que justifica a nossa razão de ser e nos torna realmente diferente dos outros, o que garante a nossa actualidade é precisamente o testemunho de Deus que devemos dar àqueles a quem servimos com o nosso trabalho, no exercício da nossa missão. Para além da competência e da qualidade do serviço que se presta, é necessário que transpareça a dimensão espiritual do homem.
Os servos de Jesus, no seu serviço ao reino, devem dar este testemunho no meio em que vivem. Ora, é preciso que não faltem pessoas, homens e mulheres, que abracem este modo/ideal de vida. Há que apostar mais nos servos externos, pois pressinto que são eles que poderão garantir o futuro da LSJ, dentro do espírito e dos objectivos do Fundador. Poderão ser o futuro, não só porque, vivendo no mundo, aí poderão fazer chegar os valores e a espiritualidade do reino, como também poderão garantir o futuro, ou seja, a sobrevivência das próprias obras da LSJ, para as quais as servas internas já são manifestamente insuficientes.
As comunidades das servas internas, se tiverem visibilidade nas paróquias, e os servos externos, se forem conhecidos e reconhecidos como tal, serão, por certo, impulsionadores de novas vocações. Mas o principal caudal dos servos externos (e, porventura, também de servos internos) é, deve ser, formado pelas pessoas (e são largas centenas) que trabalham nas diferentes casas, seja qual for a sua ocupação. Ninguém deveria trabalhar nas casas da LSJ sem ser minimamente introduzido no carisma e no espírito que anima esta Instituição. E ninguém deveria ser admitido sem estar disposto a servir/trabalhar segundo o espírito da Obra. Caso contrário, como é que a LSJ pode realizar efectivamente a sua missão? Como é que pode ajudar Jesus a reinar no mundo, se não O ajuda a reinar dentro das suas próprias casas e no âmbito das suas actividades. Por isso, atrevo-me a dizer que, em princípio, todas as pessoas que trabalham nas casas da Liga dos Servos de Jesus deveriam ser, pelo menos num certo grau, servos de Jesus. Então, Jesus poderá reinar em muitas pessoas, começando por todos aqueles que são acolhidos nas diferentes casas e, de pois, estendendo-se aos seus familiares. Além disso, algumas dessas pessoas poderiam assumir maiores responsabilidades dentro das obras da Instituição.
Já aludimos ao desafio de ver mais além e de ir mais longe. A presença da LSJ em Angola é, sem dúvida, um momento marcante na sua história. Não foi fácil dar este salto. Em 1997, alguém apresentou ao Bispo Diocesano a proposta da expansão da LSJ para Angola, não só pela necessidade de ela sair para fora como pelo facto de naquele país haver carências que se situavam no âmbito próprio das suas actividades. Como é óbvio, tal projecto caiu numa gaveta rota.
Por esse tempo, eram apontadas duas razões fundamentais para recusar tal apelo e desafio. Dizia-se: “somos já demasiado velhas para ir para as missões”. Esqueciam que quem acredita, segundo o exemplo de Abraão, está sempre disposto a partir, a começar uma nova viagem, a abraçar um novo projecto. Diziam também: “somos tão poucas, precisamos, isso sim, que venham de lá vocações para manter as nossas casas abertas”. Esqueciam o testemunho da viúva de Sarepta. Aquela mulher tinha pouca farinha e pouco azeite. Se ela se tivesse recusado a partilhar com o profeta Elias, se tivesse pensado apenas em si e no seu filho, pouco tempo depois ter-se-ia esgotado a farinha e o azeite e os dois teriam morrido. Como partilhou o pouco que tinha, não só aliviou o profeta, como garantiu a sua sobrevivência e a do filho. O pouco só é pouco quando o queremos apenas para nós. O pouco partilhado torna-se muito, é suficiente para nós e para os outros.
Felizmente, esta oposição foi vencida. Foi vencida por aqueles que fizeram todas as diligências para que tal acontecesse. E, sobretudo, foi vencida por três mulheres corajosas que, animadas pela fé de Abraão e pela generosidade da viúva de Sarepta, partiram e deram-se a si mesmas, para tornar realidade o sonho. Elas sabiam e acreditavam que só quem parte não perde a esperança, e só quem se dá não morre sozinho!
Esta atitude de ver mais além e ir mais longe é o segredo para que a LSJ, sem se preocupar com a sua sobrevivência, contribua, na fidelidade ao seu Fundador, para que Jesus reine, as pessoas se santifiquem e a sociedade se construa segundo o sonho de Deus.

Pe. José Manuel Martins de Almeida