Como é que o ser humano sobreviveu a tanta doença ao longo da sua existência? Pelo que tenho assistido, digo francamente que não sei. O temor de um vírus que nos entra por debaixo da nossa porta, mas ninguém o pára. E o pior está para vir! A OMS é como o algodão que passa no chão depois de uma limpeza bem feita: não engana!

Que fazer a uma doença incurável que arrasta a fome, a tristeza e o colapso social?

Peguei no dinheiro que me restava e fiz uma cave à prova de tudo. Impossível esse maldoso aqui entrar. Nem os polícias que já bebem na rua porque todos os bares estão fechados. Nem os jovens que atiram pedras às janelas porque não têm sítio para se reunir. Nem a TV supersticiosa que vaticina que os casos vão subir porque vamos sempre somando aos anteriores, acumulando a expectativa de quando se esgota a memória da calculadora de tanto número.

Até tenho receio de animais porque, se calhar, transportam esse bicho mas, na verdade, nada lhes fazendo. São assintomaticos. Porém a mim podem contaminar e acabar com a reserva do Paracetamol.

Posso ter ficado liso, mas safei-me de ser contaminado. Este bunker nem na Coreia do Norte. Posso não ter reserva para comer mas tenho desinfectante até 2030.

O alívio finalmente me invade porque seguramente não serei atacado por ninguém. Mas de facto, também me assustei porque têm havido assaltos atrás de assaltos porque a fome já invade muitas bocas. Mas o problema é o contágio. Pobre gente que sofre.

Tudo terá começado em Fevereiro? Marco? Sim, essa altura. Ficar fechado em casa e encerrar as empresas não foi suficiente. Os números eram assustadores. Picos atrás de picos como lanças que furavam o peito. A mente fervilhava de pavor. A humanidade nunca viu nada assim!

Aguentei-me até meio de Abril. Depois bunker com ele. Sou eu mesmo que desinfecto tudo. E o ideal era a creolina. Malvados dos europeus acabaram com esse desinfectante mágico. Só o cheiro afasta a malvadez humana.

Agora só falo por telemóvel. Ninguém. Não quero ver ninguém. Sei lá se um suposto amigo vem aí com o fito de me contaminar? Era o que faltava! Aqui nem Covid nem covinhas.

Quem terá manobrado isto? Malandros e com primos em todo o lado. Vírus da China, Vírus da Europa. Agora até já ouvi que há um primo de Alcabideche. Bando de malfeitores.

E a pouca vergonha dos espirros? O mal que fazem! E nem todos tomam cuidados. É como um granada que rebenta. Para o chão já!

Vou já a correr a fazer um teste Covid. Molecular ou Serológico? Meu Deus, como nas compras online. Bem, o mais caro. A receita? A pagar isso e querem receita? Ok, já arranjo. Ligo para o meu médico. Passados 5 minutos tinha a receita no celular. Serve?

As alucinações levaram-me mesmo ao médico. Não, o exame deu negativo. O problema são as noites do confinamento. Autenticos episódios de  Fanfic. Não sabe pois não? É tipo HARRY POTTER. Pesadelo atrás de pesadelo. Até o baixinho da mercearia vinha atrás de mim de vassoura e uma caçadeira. Era fugir para a cave mais funda do Bairro. Qual bairro Dr? Sei lá, Alfama talvez.

O médico achou um total disparate estar fechado num Bunker e mandou-me para uma ilha. Claro, sem contactos sociais. No entanto pode conviver com golfinhos e tubarões. O quê? Sim desses que você sabe que fazem mal! Mas não terão Covid 19? Não se sabe? Pois o bichinho pode morrer afogado. Não há certeza. Tudo bem! Agora, afastamento social sempre! Com os tubarões cuidado que podem morder.

Tentei comprar um cão com certificado de descontaminação (passado por um conceituado veterinário) mas, por isso, os preços dispararam. Sim do cão obviamente! A procura subiu dada a necessidade de sentirmos alguém, algo com vida que nos entenda e compreenda. Mas a esses preços é melhor esquecer. E os da rua estão contaminados, nem pensar!

Tentei aviar a receita passada pelo médico. A dor da imaginação estava ao rubro. 90 dias fechado em casa, com pesadelos de Fanfic, sem ouvir nada na rua e a TV com aulas de estatística, só me restava ficar louco.

Estão esgotados? Anda tudo doido e esgotaram os medicamentos? Não há alternativas? Nem genéricos? Não há previsão de repor stoks ou estoques? Mas para o Covid há, ou seja o paracetamol. Tudo bem. Já fico mais tranquilo.

Acabei por ir para a ilha. Sem dúvida o vento, o sol, o sal, o peixe, ajudaram-me a esquecer esse mundo. Subitamente sem comunicação com a civilização parece que tudo funciona. A tensão arterial normal, as insónias desaparecem, a digestão faz-se lindamente. Os sonhos agora são de ficção histórica, com cavaleiros imponentes e falanges majestosas. Até aprendi a dançar a Quadrilha! Sim uma dança do século XVII. Não, não morre ninguém!

Entretanto toca o celular?

– Aí fazem testes ao Covid?

Desliguei logo. Agora que finalmente estou a voltar a ser humano, logo uma chamada destas. Francamente! Que histeria!

Voltei a ler, escrever e a pensar. Temo que este meu pensamento se vá afastando da razão universal. Mas o facto é que não posso ficar aqui eternamente. Um dia o dinheiro acaba-se e tenho de voltar à labuta.

Mas parece estranho. A doença abafa tantos problemas. Até os financeiros. Como é possível que um vírus biológico seja mesmo um vírus social?

A escada chegou ao fim. Desde março que venho descendo degrau a degrau. A areia quente do sol, onde correm lagartas e insectos, é o chão que agora piso.

Mais fundo, só escavando com a pazinha  de plástico azul, que ainda guardo quando era criança.

Pegando nos binóculos vejo ao longe gente a afundar-se. Mas também gente a safar-se! E de que maneira…

Com tanto binóculo a circundar a pandemia pouco ou nada se faz. Há quem fique a ver e nada fazer. A gravidade que nos liga ao mundo, arrasta-nos e parece que falta força para dar a volta. Muita gente fica sem saber o que fazer. E nada melhor que ver a TV. Anima logo o espírito!

Já estou em julho. Confinado mas confiante. Continuo longe do ser humano, do contacto social e do melindroso vírus. A bateria do celular já se estragou. O dinheiro acabou. O tempo já não existe. Só sei que o sol nasce e se põe atrás do monte. A idade parou. Deixei de envelhecer.

Mas daqui é que não saio. Mesmo!

Os navios que passam ao largo nem lhes digo adeus. A bizarria até inverteu os papéis. Eles com medo de salvarem um contaminado. Eu de não querer ser contaminado!

Hoje náufrago é ser feliz. Não uso máscara, nem luvas, toco em tudo o que me apetece e não lavo as mãos. Nem tenho que suportar o cheiro da lixívia ou do alcool gel.

Afinal é este o último confinamento.

Para além deste sou sincero. Não conheço mais nenhum!

Que seja eficaz, obviamente.

António Alçada