RECORDAR UM TÁXISTA

Há muito que estava agendado um almoço com um grupo de amigos. A ementa, dada a festividade dos Santos Populares, principalmente do S. João, tinha obrigatoriamente que ser uma sardinhada. As sardinhas vieram essa manhã, diretamente de Setúbal, acompanhadas com assador profissional.

O cenário gastronómico escolhido foi a Quinta Barroca de Eirieira (Orjais), nas fraldas nascentes da Serra da Estrela, a mil metros de altitude, com uma paisagem deslumbrante. Numa pedra granítica de 3X1,80 Cm, vinda das pedreiras de Pinhel, vinte pessoas ali se encontraram, à sombra de uma figueira centenária. Alguém afirmou que se no País há alguns sítios únicos, estamos na presença de um deles.

Sentou-se ao meu lado um companheiro de rosto tisnado pelo sol e mãos calejadas do trabalho, daquelas que mexem na terra todos os dias.

Nasceu na Borralheira (Teixoso), mas foi batizado em Orjais. Naqueles tempos, atendendo a que o Pároco de Orjais não tinha côngruas, nem meios de sobrevivência, o serviço religioso foi canalizado para essa Paróquia, razão pela qual a tem no coração: “Nasci para vida na Borralheira, para a Fé Cristã em Orjais”.

Não teve direito a ir para a escola, ainda criança já comandava uma junta de bois a lavrar a terra, “tinha de ajudar os meus pais”. Hoje vive-se o contrário: são os pais que ajudam economicamente os filhos. Mais tarde, já adulto, teve de fazer o exame da 4ª classe num curso de alfabetização.

Foi incorporado no extinto Regimento de Caçadores 2 da Covilhã, hoje parte das instalações da UBI (Universidade da Beira Interior), onde esteve dois anos como ordenança do Segundo Comandante. Estas funções militares salvaram-no de ser mobilizado para os territórios da índia Portuguesa. Não esquece o seu companheiro de pelotão – o Alfredo da Bendada-, um dos maiores acordeonistas da Beira Baixa e recorda também o Albertino Porfírio do Teixoso, um acordeonista referenciado. Um dia, o Comandante organizou uma sessão pública de acordeão, uma espécie de campeonato, e o Alfredo da Bendada deu uma lição a todos, ganhando o primeiro prémio.

Nunca esquece que o pior que lhe aconteceu, ao entrar na “porta das armas”, foi ter sido obrigado a rapar o cabelo, parecia uma carequinha.

Findo o serviço militar, e com a obtenção da carta de pesados, exerceu a profissão de motorista em Lisboa, mas não demorou muito até regressar à Covilhã como taxista contratado. Perseguindo o seu sonho, em 1969, com o alvará de taxista da Direção Geral dos Transportes Terrestres, comprou um táxi em segunda mão e começou a trabalhar em Orjais. A Praça de Táxis era em frente à Igreja Paroquial, com orago S. Pedro, que sempre o protegeu nas suas viagens, ultrapassando o S. Cristóvão, santo de duvidosa santidade, mas o Padroeiro dos Motoristas. Desconheço quem seja o patrono dos taxistas.

Inicialmente as pessoas não aderiram a este serviço de transporte, e fazer praça custava muito, exigia muitos sacrifícios. Surgiu a emigração e aí iniciou um grande ciclo de serviços por todo o País e para o estrangeiro, principalmente para França. Tinha semanas de ir duas vezes àquele País.

Para trás ficaram quarenta e cinco anos de taxista, milhares e milhares de quilómetros percorridos, sem conflitualidades: “Fui um HOMEM com sorte e com muita saúde”.

Agora dedica-se a trabalhos de agricultura ocupacional, porque “ninguém compra os nossos produtos biológicos, que são de máxima qualidade. Tudo vai para as grandes supermercados a comprar gato por lebre.”

Vive com a sua companheira, há 61 anos que tomaram o compromisso de se amarem para sempre. Para esta longa longevidade conjugal, dá uma explicação interessante: ”quando era criança, as mulheres vestiam saias até ao chão e andavam a sachar o milho. Iam para casa, iam para a cama cedo, não havia televisão. Quando casei já usavam as saias até aos joelhos. Hoje andam com quase tudo à mostra, não se respeitam e não se dão ao respeito. Os meus pais ensinaram-me com o seu exemplo e por palavras a forma de respeitar os outros e acima de tudo a vida conjugal. Nunca esqueci esses ensinamentos”.

O nosso ex-militar, taxista e agricultor chama-se João Marques Carlos, um jovem com 84 anos, a viver em Orjais – Covilhã.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Outubro/2015