Regresso a Janeiro de Cima

 

Há anos que estão marcados para a última quarta-feira do mês de Outubro os encontros dos ex-bancários do ex-Banco Pinto e Sotto Mayor das agências da Covilhã e Fundão, irmanados num ideal de convivência e de recordações interpessoais.

O nosso Homem recebeu o convite via telemóvel, e como sempre não se fez rogado e desde logo deu o sim de presença. Desta vez não podia faltar, uma vez que por motivos de saúde já falhara os anteriores. Além disso, todos os pretextos são bons para visitar as gentes hospitaleiras da Aldeia do Xisto Janeiro de Cima, que está nos confins do concelho do Fundão.

Acertadas as agulhas, lá partiu pleno de vontade e alegria, com uma passagem pela cidade da Covilhã. À boleia, como gosta, deu os azimutes para chegar ao coração interior da Nação.

A viagem, de quase uma hora, tem a cor preta na paisagem, pintada por mãos criminosas: a floresta poente da Serra da Estrela, freguesias da Coutada, do Barco, de Lavacolhos, Serras e Minas apetecíveis para as insaciáveis empresas multinacionais. Talvez por obra e graça do Mártir S. Sebastião, que afugentava lepras e pragas, os incêndios não lavraram em Janeiro de Cima, o mesmo não se pode dizer dos seus vizinhos Orvalho e Pampilhosa da Serra, altos serranos queimados.

Não é por caso que o Encontro Anual se dá na casa do ex-bancário do Banco de Portugal, mais tarde no BPSM, Fernando Santos, que esteve quase a abraçar o presbiterado egitaniense, se não tivesse visto outros valores. Hoje, além de avô, é guardião da Capela de Xisto daquele Santo Mártir que o Povo de Janeiro de Cima festeja em Janeiro de cada ano, realizando uma procissão com sacos de pão às costas para distribuir pelas centenas de romeiros que ali acodem. Lamenta que este ano os calores descontrolados lhe tenham levado mais de um milhar de cebolas, que gostaria de dar aos amigos. Também se mostra preocupado com as obras de uma Capela Funerária, nas costas da Igreja Nova de Nossa Senhora da Assunção, que mais parece um bunker ou um daqueles caixotes enormes onde os camiões descarregam o entulho.

O almoço, um borrego guisado, confeccionado pelo Canário, está uma delícia. Além de bom cozinheiro, o nosso Canário também canta e toca, estando convidado para acompanhar ao órgão os cânticos litúrgicos na Paróquia do Teixoso.

A hora da refeição serve para pôr em dia os bons e maus tempos do ofício bancário e recordar os que já partiram. Um companheiro, além de exaltar o espírito de camaradagem entre todos, não se esquece de um chefe que proibia uma funcionária grávida de ir à casa-de-banho (só às horas em que ele entendia). Há patrões tão prepotentes que até querem mandar na bexiga dos outros. Quanto a consultas de ginecologia, só previamente autorizadas pela Autoridade. Seria engraçado imaginar o bébé a querer nascer no balcão bancário e o patrão zangão: “Ó minha senhora, espere lá, só pode dar à luz fora do horário de trabalho!”

A acta do último encontro em Penamacor, na Quinta da Raivosa, é lida e aprovada por unanimidade. Também é escutada a acta inaugural da actual Associação. Contas apresentadas, marca-se o próximo encontro para 13 de Dezembro, na Quinta do André, em Unhais da Serra. A ementa será natalícia: batatas e couves com bacalhau. O nosso anfitrião prontifica-se logo a oferecer as couves.

Segue-se uma visita à aldeia, vestida de xisto das paredes das casas até ao chão que pisamos. Ruas, ruelas, quelhas, becos, cantos e recantos que quase se beijam. Se alguém comete um pecado, a toponímia redime tudo: Rua da Procissão, Rua do Espírito Santo, Rua de São Sebastião…

Hoje as ruas estão quase vazias. Passa-se pela Casa do Quelho, das Tecedeiras, da Cova do Barro, da Pedra Rolada, pelo Restaurante “Fiado” até à paragem obrigatória no Café Cardoso. Na porta de entrada está afixado um aviso: “Trespassa-se em 2018”.

Entrados, respiramos um ambiente benfiquista, tantos são os cartazes da águia, misturados com fotografias do antigamente. Não falta a lareira para quando o frio apertar, a sala de jantar para aconchegar o estômago e a indicação de uma rota pedestre pelos Caminhos do Xisto, não vá o viajante perder-se… Este café também já é poema: “Aqui para os lados do Fundão/Existe um Café de nome Cardoso/Que nos aquece o coração/Dentro de um espaço airoso”. À porta, como sempre, encontramos o Sr. Júlio Dias Marques, uma figura inesquecível, 68 anos, ainda jovem para o aspecto que apresenta. Há anos que recebe apoio do Centro de Dia, que lhe providencia duas refeições diárias. O nosso Homem pergunta-lhe pela profissão e obtém rápida resposta: “estou desempregado e doente desde que nasci.”

O empregado questiona o nosso Homem sobre o que está a escrever.

– Escrevo o que vejo e às vezes o que oiço.

– É preciso que se fale, bem ou mal. Enquanto falarem de nós, é sinal que estamos vivos.

Depois de uma passagem pela praia fluvial, junto ao Rio Zêzere, onde a água ainda reflecte o pinhal, cruzamos com um casal muito jovem (a escola básica ainda está a funcionar), e seguimos para o Lar. Somos informados que são raras as visitas nestes dias Outonais, “ninguém quer ver as folhas caídas”.

Embora com vento de Outono, o sol assemelha-se a um ovo estrelado gigante, aquecendo jovens e velhos, vivos e mortos.

 

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Outubro/2017