REINSERÇÃO ESCOLAR

O nosso Homem tinha nascido numa aldeia escondida e nos confins da zona mais profunda do pinhal. Ali vivia, num território cujos horizontes e fronteiras terminavam nas copas dos pinheiros. A primeira viagem que fez foi aos vinte e um anos para ir às sortes. A junta militar encontrou-o tão franzino, tão magrinho, quase a precisar de internamento num hospital para tuberculosos. Mesmo assim ficou “ esperado “, porque se o país entrasse em guerra tinha de avançar para defender a pátria.

Herdou umas pobres courelas nos socalcos e clareiras das matas. Também tinha umas cabras, que sempre lhe davam uns cabritos para vender no mercado da vila a muitos comerciantes oportunistas. A recolha da resina sempre dava uma ajuda monetária para sustentar a numerosa família.

Para todas essas atividades agrícolas, não havia melhor e mais barata mão-de-obra do que a dos seus filhos menores. Mal cumpriam uma idade em que já mostravam alguma força, recebiam ordens para tratar a terra,  guardar as cabras e crestar as bicas da resina. Entretanto, os mais velhos partiam para a diáspora à procura de futuro.

Os novos foram assim desviados dos caminhos da escola primária para os trilhos sinuosos do trabalho rural, a carreira da subsistência. Apesar dos inúmeros avisos dos responsáveis escolares, o nosso Homem não autorizava que nenhum fillho se sentasse numa cadeira escolar. A situação prolongou-se e agudizou-se. As simples entrevistas, as advertências verbais e escritas não resultaram, forçando-se a aplicação de uma coima.

Notificado pelas autoridades, optou por não pagar a multa e as crianças continuaram a trabalhar nas horas de frequentar a escola.

O caso chegou às instâncias superiores do Ministério da Educação e às autoridades judiciais e policiais. Um dia, uma patrulha da GNR avançou para a aldeia, a fim de fazer cumprir a lei: obrigá-lo a pagar a coima e a deixar os filhos ir à escola. O nosso Homem barricou-se em casa e recebeu as autoridades com um bacamarte herdado do seu pai, de carregar pela boca. No final de um rápido diálogo, entregou-se e, perante a gravidade das “boas-vindas” dadas às eminências policiais, lavrou-se um processo judicial, que resultou na aplicação de uma pena de quinze meses de prisão efectiva.

Conduzido e escoltado ao Estabelecimento Prisional por seis elementos armados até aos dentes, todo o pessoal penitenciário ficou com a ideia de que chegara um grande criminoso. Mas, afinal, era só um pobre homem que não deixara os filhos frequentar a escola. Todas as vicissitudes que se seguiram deram-lhe o caminho da prisão.

Ironia do destino, o nosso Homem, além de cumprir a pena, foi obrigado, por força da lei, a frequentar a escola do Estabelecimento Prisional, um curso orientado e dirigido por uma Professora destacada do Ministério da Educação. Cumpria assim a “ pena acessória”.

Esclarecido da sua situação prisional, recebeu gratuitamente o material escolar e começou a frequentar o curso de adultos, estimulado pela Professora Belmira Lages, natural da Rapoula do Côa (Sabugal).Durante mais de uma dezena de anos, muitos alunos reclusos beneficiaram dos seus ensinamentos, da sua competência profissional e obtiveram o exame da 4ª Classe de forma séria e honesta (ao contrário de tanta “eminência parda” da nação). Mais tarde, formou-se em História na Universidade e tirou o grande Mestrado em Histórias da Vida no Estabelecimento Prisional.

Estudada a personalidade do recluso, este foi trabalhar em regime aberto nas atividades agro-pecuárias do Estabelecimento Prisional, decisão resultante de uma Reunião do Conselho Técnico. Colocou-se o nosso Homem no seu mundo, o seu habitat, e sempre passava umas horas longe dos companheiros “criminosos”, que ele nunca sonhara vir a conhecer.

Ali desempenhou um trabalho meritório, pois conhecia muito bem as galinhas, os patos, os porcos e os coelhos, animais que estimava e sabia tratar.

Na escola, lá começou com muito sacrifício, paciência e lentidão a aprender o seu nome, porque a idade já ia adiantada e, como diz o povo, “ burro velho não aprende linguagem”.

Muitas vezes se encontrava com o Director do Estabelecimento Prisional, mas um dia pediu para lhe falar no gabinete. Apresentou-se com um livro e uma caneta e disse muito emocionado:” Senhor Director, não sou capaz de andar na escola, este livro e esta caneta pesam-me mais que todas as ferramentas que deixei na minha casa”. O Diretor olhou com compreensão para o recluso e concordou plenamente, psicologicamente era verdade, não mentia. Chamou a Professora e, após uma conversação, o nosso Homem arranjou forças para nunca mais desistir de frequentar as aulas até conseguir escrever o seu nome completo.

Ao fim de algum tempo, verificou que já não precisava de sujar os dedos para assinar um documento, e nunca mais viu aquela tinta que se agarra à pele.

O dia do fim da pena aproximou-se. Quis voltar a ter uma conversa no Gabinete do Diretor. O nosso Homem, depois de verificar as vantagens por ter aprendido a escrever o seu nome e a frequentadar a escola com uma professora que fora como uma mãe para ele, queria pedir autorização para levantar uns dinheiros, aos quais tinha direito pelo seu trabalho prisional. E, para espanto de todos, disse que ia comprar livros para os seus filhos levarem à escola, à qual nunca mais faltariam.

O Diretor nem queria acreditar nesta reviravolta e chamou a Professora, mais entendida nessa matéria dos livros escolares.

Foi autorizado a levantar o dinheiro, a Professora comprou-lhe os livros e o nosso Homem partiu para as suas origens a saber escrever o nome e carregado de livros para os seus filhos. Bem-Haja à Professora Belmira Lages, sem ela não seria possível este milagre humano de reinserção escolar e social.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Agosto/2013