Conheci-o no Núcleo Sportinguista do Fundão, uma coletividade que há mais de vinte anos é um importante centro de convívio. Aí encontramos sempre um parceiro para um jogo de sueca ou bisca lambida, para comentar os jornais diários, conversar ou simplesmente ver a bola. Em jogos do Sporting, as salas estão sempre cheias que nem um ovo. Se ganha dá gosto ver tantas pessoas felizes; se perde já sei que a culpa é do árbitro, do sistema, e oiço as mais delirantes teorias da conspiração. Todavia, o nosso HOMEM não era dado a futebóis. O seu campeonato consistia em apanhar todos os dias uma bebedeira maior do que a anterior. Encostava a barriga ao balcão e parecia colado durante vários tintos, pois o tempo deste HOMEM media-se em quartilhos… Nunca vi ninguém marcar tantos golos e sair sempre derrotado.
Não convivia, bebia. Bebia tanto que muitas vezes era necessário ajudá-lo a levantar-se. A imagem de um homem no chão, sem conseguir esboçar um movimento, é das mais degradantes e aflitivas.
Pelo menos uma vez, na Avenida da Liberdade, foi preciso chamar o INEM e dar-lhe assistência médica. A sua alcoolizada via-sacra lembrava as quedas de Cristo a caminho do Calvário. Por sorte, sempre teve alguns cireneus que o apoiaram e levantaram.
– Tens que deixar de beber.
– Pois tenho. Até amanhã.
Só ele poderia terminar o seu calvário e libertar-se do vício do álcool. No entanto, a vontade própria, a força, a coragem e outros conselhos de reabilitação eram rapidamente vaporizados.
O nosso HOMEM vivia com a mãe, mas a relação era assaz conflituosa, em grande parte devido ao excesso de vinho na cabeça que levava todos os dias para casa. A mãe foi forçada a ir para um lar, onde podia ter paz e sossego.
O nosso HOMEM ainda exerceu algumas profissões, mas trabalhar com uma sede de morte nunca foi agradável nem estimulante. Sem grandes meios de subsistência, teve necessidade de receber refeições da Misericórdia local. Todos os dias e sempre a horas chegava a marmita à sua residência. Muitas vezes não respondia ao chamamento, já “ curtia “ mais uma bebedeira. Assim passaram a deixar as refeições num local combinado.
No primeiro dia do ano novo, encontraram à sua porta o jantar da noite anterior, da última noite do ano. Estranharam não ter sido recolhido e chamaram-no várias vezes. Nada foi respondido e as autoridades policiais foram convocadas. Mal abriram a porta depararam com o nosso HOMEM no chão, agora um cadáver com uma ferida na cabeça. Chamaram os peritos forenses e as moscas do jornalismo da desgraça. À porta continuava a comida…à espera que o nosso HOMEM saísse da casota… como um cão.
No último dia do ano, enquanto muitos festejavam um novo ciclo, morreu um ser humano, sozinho e isolado, no “Beco dos Borracheiros” (Fundão), um beco sem saída que poderia ser a imagem do país onde vivemos. Senti-me triste por nunca mais poder ajudar este HOMEM a levantar-se.
Lembro-me de iguais homens na Romaria de Nossa Senhora da Ajuda, na Malhada Sorda (Almeida). Já estava com os copos a despejar o estômago à frente de umas senhoras muito bem vestidas. As bonecas abanaram a cabeça e exclamaram: “miséria, miséria!”. O nosso HOMEM respondeu-lhes: ”fartura, fartura!”. Outra vez um outo deixou cair o chapéu de abas largas à sua frente. As pessoas, ao passar, pensavam que se tratava de um pedinte e encheram-lhe o chapéu de moedas. “Um bêbedo com sorte” diziam alguns…
Tão só na vida, tão poucos a acompanhá-lo até à última morada…

António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Janeiro/2015