O meu amigo Mário nasceu no Souto da Casa (concelho do Fundão), uma aldeia de gente trabalhadora, generosa, lutadora, que não deixa vergar a coluna vertebral. Nunca é demais lembrar o Povo que reconquistou as terras à poderosa família dos Garretes. O fim dessa coutada tornou-se rapidamente num símbolo de resistência comunitária, conhecido como a “tomada do carvalhal”, ainda hoje celebrada na quarta-feira de cinzas e já lá vão mais de 100 anos desde que se gritou pela primeira vez “ O CARVALHAL É NOSSO!”.

O Souto da Casa foi também a única freguesia portuguesa a enfrentar e derrotar o antigo regime nas urnas em 1969. Pela primeira vez em Portugal, a Oposição conseguiu ganhar as eleições, o que motivou uma queixa-crime por parte da G.N.R. do Fundão, acusando o Povo do Souto da Casa de “subversão”. Recorde-se a coragem do então Delegado do Ministério Público – Laborinho Lúcio-, que mandou arquivar o processo por falta de provas.

Também um clérigo quis “endireitar as costas ao Povo do Souto da Casa”. Quando o Povo soube, a “reverência” foi logo “endireitá-las” para outra freguesia. Foi nesse contexto de política local que o nosso jovem cresceu. Um dia, como quase todos os jovens beirões, fez as malas para Lisboa.

Conhecemo-nos na capital na década de setenta do século passado, ele estudante universitário de Medicina, eu empregado de escritório numa empresa. Mais tarde, quando frequentei o curso de Ciências Criminais na sede da Polícia Judiciária, acabámos por partilhar a mesma casa. Lembro-me dos “mimos” gastronómicos que os pais lhe enviavam da Cova da Beira – queijos, enchidos, frutas… Acabava sempre por me dar tudo, não queria nada para ele.

Oriundo da “Gardunha Democrática”, depressa se apercebeu do fervilhar de movimentos estudantis contra a Guerra Colonial (o seu irmão foi “comando” na Guiné-Bissau) e a favor da libertação das colónias, tendência que se verificava em quase toda a Europa. Durante três anos consecutivos, candidatou-se à Direção da Associação de Estudantes de Medicina de Lisboa, à época um cargo altamente politizado. Paralelamente, trabalhou à noite cerca de um ano como vigilante de um grande estacionamento automóvel no Edifício Castilho.

Em andanças políticas e culturais pela capital, conheceu uma universitária de Letras, sua futura esposa – Otília Gorriz. Conheceram-se num grupo de jovens – estudantes, trabalhadores e artistas -, que se reuniam na então recém inaugurada Igreja da Sagrada Família, de Frades Capuchinhos, em S. Domingos de Benfica. A coberto da Igreja, muitas actividades aí foram planeadas e foi também aí que conheceram pessoalmente figuras como Carlos Paredes, Mário Viegas, Giacometti, entre outros. Com um grande interesse e gosto por cinema, também foi nesse grupo que o Mário conheceu José Vieira Marques que, tendo sido padre, se tornou professor de cinema, apoiando cineclubes e cineastas pouco conhecidos. Viria a dirigir durante trinta anos o Festival Internacional da Figueira da Foz, acabando por viver e falecer em Setúbal. Apoiados por ele, Mário e Otília visitaram vários bairros periféricos e problemáticos de Lisboa (Boavista, Musgueira, etc..), partilharam inquietações e tornaram-se grandes entusiastas do cinema. Aliás, o ainda jovem universitário participava, sempre que possível, em tertúlias sobre a sétima arte no Café S. Remo, junto ao Saldanha, onde se encontravam muitos dos intelectuais da oposição ao regime vigente. Um dos seus sonhos, a par da Medicina, era poder um dia ter uma máquina de filmar que lhe permitisse “captar a realidade”, como ele próprio dizia. O cinema era visto como uma poderosa arma contra o obscurantismo dominante, e o Mário tornou-se num estudioso e “feroz” cinéfilo. Em 1974 era já membro do Cineclube Universitário de Lisboa.

Brotou o 25 de Abril de 1974, o que alimentou mais a sua chama revolucionária e paixão política. Revelava determinação, uma invulgar firmeza e capacidade para assumir compromissos. Foi sem surpresa que se tornou membro activo do MRPP, ele que já antes do 25 de Abril integrara a FEML (organização do MRPP para o sector estudantil). A madrugada do 25 de Abril apanhou-o – a ele mais a namorada e dois colegas -, a regressar do Fundão, às 7h da manhã, onde tinham ido nessa noite pintar a cidade com slogans anti guerra colonial. Isto porque, uns dias antes, em férias de Páscoa, a cidade tinha aparecido toda pintada, pelo que seria fácil para a polícia deduzir quem eram os principais suspeitos e, sem provas, conduzi-los ao chilindró. Daí a urgência de ir clandestinamente fazer de novo o mesmo trabalho. Junto à portagem da A1, já havia muitos soldados deitados na berma da estrada, em posição de combate.

A 28 de Maio de 1975 foi preso ilegalmente – sem a assinatura do mandato de captura pelo COPCON-, juntamente com centenas de militantes, masculinos e femininos. Os homens seguiram para o Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz, as mulheres para Caxias. Iniciaram uma greve de fome e só um mês depois foram libertados, sem qualquer explicação jurídica (ou outra) para a sua prisão.

Licenciado em Medicina, principiou a sua profissão no Hospital de Santa Maria e fez a chamada “Periferia” num Posto Médico de Setúbal, onde observava crianças do ensino primário das mais diversas proveniências. Aqui angariou grande simpatia pela forma amiga como tratava todas as pessoas, independentemente da cor, da raça, do estado clínico, do credo religioso ou político. Sei também que trabalhou no Couço (concelho de Coruche). A Medicina, longe de ser um “castigo”, era uma forma de aproximação à circunstância do outro. Em Setúbal, convivia amiudadamente com os meus pais e irmãos, de quem era amigo há já vários anos, e tinham por ele um grande respeito e carinho, como se de um familiar próximo se tratasse.

Tinha fibra e toda a gente lhe adivinhava um brilhante futuro – como médico nas áreas da Cardiologia (sua grande paixão) ou do Termalismo (um interesse mais recente) -, mas também como político capaz de resolver os problemas concretos das pessoas. Infelizmente, a morte traiçoeira ceifou-lhe a vida aos 29 anos, num brutal acidente provocado por um trator sem sinalização numa via rápida. Faleceu no dia 5 de Setembro de 1981, sendo notícia nos jornais diários do dia seguinte, particularmente no “Correio da Manhã”, que deu grande destaque à tragédia. Deixou uma jovem esposa viúva e uma filha com poucos meses.

Não tenho dúvidas de que Mário Marques Fernandes de Campos poderia ter sido uma personalidade de grande relevância na nossa história coletiva. Era um grande humanista, inteligente e sensível, defensor da Liberdade e da Tolerância. Gostava de viver e de fazer com que os outros vivessem. Que o digam os familiares e amigos.

Quando morreu o meu amigo Mário foi um dos dias mais tristes da minha vida, considero-o o primeiro irmão que perdi. Em memória à sua pessoa e aos bons tempos que passámos, o meu filho mais novo chama-se Mário. Um morre e outro nasce, é assim a vida.

Amigo Mário, onde quer que estejas, que este humilde texto seja o forte abraço que não tive tempo de te dar.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Dezembro/2014

P.S.: Agradeço a prestimosa colaboração de Otília Gorriz e António Lourenço