O título desta crónica não convida muito a leitura. No entanto, há tardes de funerais assim e sempre vale mais fazer a crónica da morte de outros do que alguém fazer a nossa.

Um Homem chega a uma idade em que todos os dias surgem notícias da morte de familiares, amigos e conhecidos (o defunto insere-se nesta categoria de afectos). Enfim, lá parti para a vila fronteiriça na companhia de um amigo. Enquanto este arrumava o automóvel na Rua dos Carros, agora Miguel Bombarda (não sei qual o motivo da alteração toponímica), avistei um jovem com quase cem anos. Entrei em diálogo franco e aberto e perguntei-lhe: “então lá deixaram morrer o Sr. Prior?” A resposta veio de imediato: “ digo-lhe que morreu de coração, nadava a conselho médico e lá se afogou na piscina do irmão”. E acrescentou: “ era bom homem e padre, esteve aqui mais de cinquenta anos, foi professor exigente e competente, contribui para que o concelho tivesse ensino secundário oficial, diretor de jornal, mandou fazer um salão paroquial de muito nível e responsável por algumas instituições de solidariedade social e cultural.” Como o senhor sabe tanto do seu Pároco? Amigo, era meu vizinho. Ali está o seu automóvel. Sabe, só me dei mal com um padre. Uns meses depois de ter casado com a minha Maria, tive de me confessar na Quaresma. Eram assim as leis normais da Santa Madre Igreja, uma vez por ano era obrigatório a confissão e a comunhão. Vinham para aqui muitos padres, alguns até aguentavam mais do que um dia. Além da oportunidade de conviver uns com os outros, ouviam e perdoavam as nossas falhas, os nossos pecados. Lá fui para o confessionário e o confessor teve o desaforo de me perguntar “se já tinha mostrado as carnes à minha mulher”. Levantei-me e abandonei o confessionário. Aliás, hoje em dia, já são poucos os que se querem confessar a padres, são incapazes de ouvir as nossas misérias.”

Lá lhe adiantei que os tempos de hoje são muito diferentes, há outras mentalidades e formas novas de pensar, todo o tempo é de mudança, como diz o poeta. Já temos um Papa, o Papa Francisco, simples, aberto, próximo, com um discurso virado para as pessoas e suas necessidades humanas.

O nosso Homem diz-me que há muito espera a morte, “mas não chega, nunca mais chega…” Digo-lhe que às vezes a Morte faz greve sem pré-aviso e por tempo indeterminado, desconhecendo-se quando recomeça a sua actividade profissional. Por outro lado, o carteiro é um rapazinho a quem se paga uma miséria (500 miolos de pão sujeitos a descontos para pombos) e não é da terra, não conhece as pessoas nem as ruas, anda aqui aflito e por isso ainda não lhe entregou a carta anunciadora da Morte. E, se os correios continuarem a fechar, talvez nunca receba a carta da Morte.

O romance de José Saramago, “Intermitências da Morte”, bailou-me na cabeça. Com muita maestria na arte de bem escrever, conta-nos a história de um dia neste planeta em que a Morte avança com uma greve interminável. E eis que surgem imensos problemas nesta sociedade de dominação capitalista em cíclicas recessões económicas, pois são atirados para o desemprego padres, cangalheiros, floristas, coveiros, fabricantes de urnas, indústrias de mármores, canteiros e tantos outros. O grande felizardo neste cenário é S. Pedro, que há quase dois mil anos não tinha um dia de férias nem um subsidiozinho para compensar a ausência de folgas. De vez em quando contava com a ajuda de Nossa Senhora do Postigo para resolver um caso mais duvidoso, e a assistência social esgotava-se aí.

Também a classe médica está feliz com esta greve da morte, mas não consegue evitar as dores; as feridas não saram, pois estão bem entranhadas, principalmente nos doentes e idosos.

Em suma, a Morte é necessária para se manter o equilíbrio na terra.

Ao despedir-me deste Homem de rosto sofrido, mãos calejadas de tantos trabalhos, disse-lhe que o mais importante é ir justificado para o além. O Homem sorriu.

Segui para a Igreja Paroquial repleta de fiéis, muitos padres, dois bispos, alguns diáconos, estes mais próximos dos celebrantes. O coro jovem entoava cânticos e o salmo “ Deus está aqui.”

O Bispo da Diocese, numa breve homilia, afirmou: “Deus cuida dos justos e a nossa vida está nas mãos do Senhor da Vida. A delícia de Deus é estar no meio de nós. Somos seus discípulos e devemos deixar-nos conduzir por Ele. O Sacerdote deve ser uma presença viva junto das comunidades.” Conheci o Padre Manuel Ribeiro Toscano em 1968, era um pároco amigo das pessoas.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Agosto/2013