Um canteiro – soldado – prisioneiro de guerra – chefe de guardas.

 

Vereis amor da Pátria, não movido/De prémio vil, mas alto e quase eterno/que não é prémio vil ser conhecido.

Lusíadas

 Rompia a aurora do ano de 1940 quando nasceu em Alcains (Castelo Branco) Manuel dos Reis Grilo, filho de pai pastor e mãe doméstica. A vida de pastorícia não o entusiasmava e sonhava trabalhar a pedra. Em terras de canteiros, de homens que das pedras fazem verdadeiras obras de arte, deu os primeiros passos profissionais com quinze anos. No Inverno, os pastores medievos vinham da Serra da Estrela com os seus rebanhos ocupar as pastagens na zona de Alcains e afins. O nosso aprendiz de canteiro, por sua vez, fazia a transumância para a Nave de Santo António, nos meses de Abril a Setembro, para lapidar as pedras na obra da estrada nacional, que iria seguir para a Torre. Diz-me: “ quando ali passo e olho para aquelas pedras aparelhadas, sinto muito orgulho, uma certa vaidade, são fruto do meu primeiro trabalho profissional.”

Seguiu-se o serviço militar. Assentou praça no extinto Regimento de Cavalaria nº 8 em Castelo Branco, onde frequentou a Escola de Cabos.

Em 1960 foi mobilizado para a Índia Portuguesa, enquadrado num Esquadrão de Cavalaria com cento e vinte militares, oriundos de diversas unidades de cavalaria. Concentrado em Elvas no Regimento de Lanceiros nº 1, partiu para Lisboa, onde embarcou no Niassa. A viagem marítima demorou quinze dias, dormindo mal nos porões, com uma alimentação a merecer inúmeros reparos e algumas tempestades. Numa dessas intempéries, pessoas e mobiliários “levantaram voo, mas a sorte protegeu-nos”. Chegou a Goa e, sob as ordens do Capitão Silva Reis, iniciou a sua comissão militar no Ultramar Português, no Esquadrão de Mapossá. Em Goa, Damão e Diu estavam cerca de três mil militares da Metrópole, pois avizinhava-se a Invasão Indiana. Ao fim de seis meses, após as ordens de Nehru, o objetivo principal passou a ser este: o menor número possível de baixas nas tropas portuguesas. Em vinte e quatro horas, os indianos tomaram conta desses três territórios. Nem podia acontecer de outra forma. O número dos militares indianos e o armamento eram muito superiores: “Nós tínhamos as velhas espingardas Mauser, uma arma de repetição, que usava munições 7,92x57mm, jipes a cair de podres, enquanto os indianos tinham armas automáticas, carros de combate anfíbios e uma forte aviação. Com os aviões podiam bombardear-nos e matar-nos a todos. Nunca o fizeram.”

Com esta capitulação, foram divididos em três campos de prisioneiros, com a particularidade de ficarem todos juntos – soldados, sargentos e oficiais.

A alimentação era péssima, nos primeiros meses comiam apenas grão e feijão-frade dos armazéns de manutenção militar, o conduto era o gorgulho que esses tinham. A melhor refeição era o pequeno-almoço: um bom café e pão untado com “uma gordura que era gostosa”.

Um dia, uns camaradas tentaram uma fuga nos carros de recolha do lixo, que foi logo abortada, causando graves problemas no campo de concentração. Os oficiais indianos ordenaram “formar” todos os militares portugueses para os fuzilarem. Num ato de coragem insuperável, o Capelão Militar – o Padre Santos-, saiu da formatura e dirigiu-se ao comandante, oferecendo a sua vida em troca de clemência para todos os militares portugueses. Esta atitude sensibilizou o militar superior indiano e as vidas foram poupadas: “era um Capelão fora do normal, inteiramente dedicado à sua missão, sempre junto dos militares. Fazem tantas estátuas em Fátima… Será que este Capelão de carne e osso, que ofereceu a sua vida para salvar a dos seus militares, não merece ser imortalizado numa pedra? Todos os anos, no dia 19 de Março, nos reunimos numa jornada de confraternização e prestamos homenagem a este Padre Capelão, que todos os domingos celebrava a Missa e até chegou a cumprir no campo de prisioneiros as Cerimónias dos 12 e 13 de Maio, em Honra de Nossa Senhora de Fátima.”

Havia um macaco – “ O Cerejo”-, que era a mascote dos militares portugueses e um oficial indiano apresentava óbvias semelhanças com o “Cerejo”. Quando esse oficial deu uma ordem ríspida a Manuel dos Reis Grilo, o nosso homem provocou-o em português: “o que é que queres, ó Cerejo?” Esta pergunta custou-lhe três dias na torradeira, local exposto ao sol, só com pão e água, pois esse militar indiano entendia muito bem a língua de Camões.

A sua mãe nunca recebeu qualquer carta do seu filho, perdiam-se pelo longo caminho e chegou a Alcains a notícia de que tinha falecido. Os sinos da Igreja Paroquial tocaram finados e “a minha mãe ainda mandou rezar missas pela minha alma”.

No entanto, a Dona Angelina Trigueiros, Membro da Cruz Vermelha Internacional, conseguiu contactar a mãe e contar-lhe o problema do filho. Lá se arranjou forma da Cruz Vermelha Indiana enviar três funcionárias ao campo de concentração para falar com Manuel dos Reis Grilo. Pediram-lhe para escrever uma carta à sua mãe, na certeza de que lhe seria entregue. A mensagem era lacónica: “Estou vivo”.

Todos os dias os presidiários saíam do “campo” para realizar trabalhos de limpeza nos rios e nas diversas obras.

Ao fim de seis meses de cativeiro, através da Cruz Vermelha Internacional, saíram de Goa em aviões com destino a Carachi (Paquistão). Aí, os navios “Vera Cruz”, “Pátria” e “Príncipe Perfeito” rumaram a Lisboa, aonde chegaram ao fim de doze dias. No Cais de Alcântara, apenas um coronel mal-humorado esperava os militares da Índia Portuguesa. Com um bengali que mais parecia um chicote, solicitava a todos para seguirem o mais rápido possível para as suas unidades: “regressei a Elvas, onde estive durante um ano em observação. Avaliaram com distinção o meu patriotismo, enquanto muitos oficiais foram expulsos e castigados, sem direito a qualquer promoção.”

Seguiu para a Escola Prática de Cavalaria de Santarém, onde frequentou o Curso de Sargentos. Em 1964, iniciou nova comissão militar em Angola, tendo desempenhado a sua missão na Polícia Militar em Luanda. Um dia recebeu um convite irrecusável para os Serviços Prisionais de Angola, na Penitenciária de Malange passaria a ter um melhor salário e outras regalias sociais.

Com o 25 de Abril, só esteve mais um ano nessas funções. O Inspetor Dr. Albertino dos Santos Fonseca de Almeida alertou-o para fugir o mais rapidamente possível para Portugal: ”se não tem dinheiro, eu empresto-lhe, a sua vida corre perigo.” Ainda hoje desconhece as razões dessa informação.

Regressado a Portugal, esperou algum tempo até ser reintegrado na Direção dos Serviços Prisionais, indo para o Estabelecimento Prisional de Elvas. Seguiu-se a Covilhã e Castelo Branco, onde foi chefe dos guardas. Ao fim de vinte e dois anos nos Serviços Prisionais aposentou-se. Tive o privilégio de ter trabalhado com este homem em Castelo Branco. No exercício do seu trabalho, recordo um homem de carácter, sempre frontal, de grande força física e moral. Era um homem respeitado, compreensivo e humano em relação aos problemas prisionais (nomeadamente a necessidade de reabilitação através da ocupação do tempo em tarefas de utilidade social), mas também disciplinador quando reclusos, guardas ou funcionários “pisavam a linha”. Cada frase sua era uma sentença, às vezes lembrava-me o grande ator John Wayne.

“ A nossa profissão é das mais lindas do mundo. Se em cem reclusos conseguirmos que um volte a acreditar em si próprio, nas suas capacidades e no seu trabalho já é um feito heroico. Se todos os que trabalham na área da justiça, fundamentalmente no meio prisional, tivessem estado presos como eu estive, acho que desempenhariam melhor a profissão. Acho que antecipei alguns problemas por ter sido um deles”.

Quando questionado sobre o que é a lei, Manuel dos Reis Grilo apresenta uma definição interessante: “ a lei é uma mulher virgem sistematicamente violada”.

Este canteiro, soldado, prisioneiro de guerra e chefe de guardas prisionais tem hoje 3 filhos e 6 netos que vivem na Suíça, onde ganham o salário que a pátria lhes negou. Embora doente, o “Chefe Grilo” vive feliz e justificado. A sua vida é um grande romance de aventuras. 

 

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Novembro/2014