UM HOMEM DE CORAGEM E DEDICAÇÃO

Assistimos a uma inflação de medalhas nestes últimos tempos da Presidência da República Portuguesa. O Chefe de Estado prepara a saída de Belém, condecorando a torto e a direito, expiando assim os seus pecados…

Neste cerimonial pomposo e tantas vezes hipócrita, há no entanto a atribuição da Grã-Cruz do Infante D. Henrique, a título póstumo, a Gaspar Castelo Branco, Ex-Diretor Geral dos Serviços Prisionais. Aqui, porque era de justiça “inteira e limpa” que se tratava, a cerimónia foi simples, com a presença da esposa, dos filhos e netos, no dia em que se assinalava o seu assassinato a 16 de Fevereiro de 1986.

Nessa fatídica data, o féretro saiu da Basílica da Estrela numa manhã fria, de chuva e vento, a caminho do cemitério da Concavada em Coimbra. Vivia-se um ambiente de medo e intimidação, talvez por isso não se tenha vislumbrado uma figura de Estado no funeral, possivelmente camuflada no meio da assistência e rodeada de seguranças à paisana. Acabara de ser assassinado, pós-25 de Abril, um dos altos quadros da Administração Pública, pelo único facto de ter cumprido as regras de um Estado de Direito Democrático. Vale a pena recordar o seu percurso.

No chamado Estado Novo, começou por desempenhar as funções de Jurista e foi secretário no Ministério da Justiça. A seguir à Revolução dos Cravos, foi nomeado Diretor da Cadeia do Limoeiro, onde tinha residência oficial, (atual Centro de Estudos Judiciários), Aljube e Mónicas (Cadeia de Mulheres).

Em 1983, pela mão do Ministro da Justiça Meneres Pimentel, foi nomeado Diretor Geral dos Serviços Prisionais. Era um Homem austero, disciplinado, de uma Ética sem cedências. Sério e trabalhador, dava sempre a cara pelas decisões hierarquicamente superiores, nunca fugindo das responsabilidades, com grande coragem e, ao mesmo tempo, serenidade.

Foi defensor, desde a primeira hora, de que a Cadeia de Apoio da Covilhã, fechada temporariamente, não deveria ser entregue a qualquer instituição, mas ficar sob tutela e ao serviço da recolha de reclusos. É oportuno recordar que esta fechara porque não existia qualquer entidade que fornecesse alimentação aos reclusos, os atrasos nos pagamentos chegaram a vários meses.

Gaspar Castelo Branco, no rescaldo de uma visita de técnicos à Covilhã, determinou a sua abertura. Com uma equipa de reclusos do Estabelecimento Prisional de Castelo Branco, principalmente oriundos da região, “preparou a casa”, garantindo a limpeza e arrumação das instalações. Na resolução do problema da alimentação, fez-se uma trempe para a cozinha, nas Oficinas de Castelo Branco e com o apoio prisional albicastrense, tudo começou a funcionar. Hoje lá está em pleno funcionamento o Estabelecimento Prisional da Covilhã, dispondo ainda da Quinta de S. Miguel, junto ao Tortosendo, utilizada por reclusos em regime aberto, desenvolvimento trabalhos ligados ao mundo rural.

A sua grande preocupação era a ocupação do tempo dos reclusos. Assim, quer em Castelo Branco quer na Covilhã, não hesitou em criar brigadas de trabalho em setores agrícolas e oficinais. Ninguém esquece, por exemplo, a apanha da flor de tília, que viria a ser comercializada para efeitos medicinais em Lisboa.

Fazia da sua profissão uma missão, lembro-me que aproveitou a Festa dos Santos Populares em Lisboa, para se deslocar, com técnicos da execução de penas e de outras áreas, ao Estabelecimento Prisional de Castelo Branco e à Cadeia de Apoio da Covilhã, inteirando-se de todos os assuntos de gestão ao pormenor e deixando diretrizes para serem cumpridas.

No seguimento desta visita, um recluso escreveu ao Ministro da Justiça, queixando-se que colocavam sal no café. O assunto chegou ao Diretor Geral, que emitiu o despacho respetivo: ”em virtude de ter saboreado várias vezes as mesmas refeições que o recluso em causa, constatei que são de muita boa qualidade (seria bom que muitos portugueses as tivessem nas suas mesas), pelo que determino oito dias de cela disciplinar. Cumpra-se e notifique-se o recluso.” O Recluso apelou para o TEP de Coimbra, mas o Juiz concordou com a legalidade do despacho, acrescentando uma nota de humor: “Um dia ouvi um recluso dizer que na cadeia até o saleiro é insonso, e o senhor queixa-se que o café tem sal?” Também é de referir que todos os pareceres lhe foram favoráveis da Procuradoria-Geral da República e da Provedoria da Justiça.

Viviam-se anos de dificuldades financeiras. Os Serviços Prisionais, apesar de exercerem o poder coercivo do Estado, eram o seu parente pobre, apanhando as migalhas que caiam da mesa do orçamento. Eram serviços que davam despesa, nunca havia receitas nem davam votos. Um Diretor de um Estabelecimento Prisional, na “cidade das três estações” (inverno, verão e caminho-de-ferro), queixou-se do imenso calor, visto o seu pobre gabinete estar durante todo o dia exposto aos raios solares e não estar autorizado a comprar uma ventoinha (o ar condicionado era uma luxuosa miragem asiática). O Diretor Geral aconselhou-lhe a medida que tomara na capital contra a canícula: “experimente abrir a janela e peça às reclusas para confecionarem cortinas”.

Num país em que toda a gente chegava atrasada – já dizia o outro que “pontualidade é perda de tempo” -, o nosso Homem estava sempre a horas no local combinado e nenhum Diretor, com este exemplo, se atrasava um segundo em cursos, reuniões ou ações de formação.

Numa visita a um Estabelecimento Prisional “puxou as orelhas” ao Chefe da Corporação de Guardas: “como é que o Senhor pode chamar a atenção da Corporação para o uso correto do fardamento, se não está a dar o exemplo?”

Conheci-o no exercício da minha actividade profissional em Castelo Branco. Um dia, após ameaças, contactei-o e confidenciou-me: “não se preocupe, as ameaças são o pão-nosso de cada dia, ainda aqui estou a falar consigo, não estou?” Poucos meses depois era assassinado.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Fevereiro/2016