UM OLHAR NO CENTENÁRIO DE VIRGÍLIO FERREIRA

“A nossa vida é toda ela de acasos. Mas é o que em nós há de necessário que lhes há-de dar um sentido.”

Conta- Corrente

Era ainda um jovem estudante, quando, quase clandestinamente, pelas mãos do meu saudoso e amigo conterrâneo Francisco dos Santos Vaz, também um jovem teólogo do Seminário Maior da Guarda (mais tarde padre, professor de ensino secundário e escritor) me chegou aos olhos a “Manhã Submersa” de Virgílio Ferreira. Num ápice li-o e reli-o, iniciando as leituras das obras literárias Virgilianas, que através dos anos foram publicadas. Foram sessenta anos a escrever, recebendo diversos prémios literários nacionais e internacionais com destaque para o Prémio Camões (Portugal) e Femina (França), entre outros.

Os seus romances estão traduzidos em diversos idiomas europeus. Obras de ficção, romances e contos, ensaios críticos e poéticos, um diário – Conta-Corrente – e o Pensar e Escrever. Ali temos reflexões filosóficas, observações humanas sobre a ausência, a palavra, o tempo, a memória, a arte, a vida e a morte.

Virgílio Ferreira é um dos maiores romancistas portugueses do século passado, com uma prosa ficcional ancorada na realidade e nas preocupações existencialistas e metafísicas.

Muitos anos mais tarde, cruzámos idênticos caminhos, em sentidos inversos, mas com o mesmo objetivo. Eu da Zona Arraiana (Bismula-Sabugal) a caminho da Escola Apostólica de Cristo Rei em Gouveia, de 1958 a 1966, na encosta norte da Serra da Estrela, Farvão. Ele, de Melo-Gouveia a caminho do Seminário Menor do Fundão, no norte da encosta da Serra da Gardunha de 1926 a 1932.

Ele encontrou manhãs submersas, eu encontrei manhãs radiosas que me abriram as portas do futuro.

A Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na Guarda vai dedicar no mês de Janeiro (mês do nascimento do escritor), um ciclo cultural com a inserção de Percursos Virgilianos. Seria interessante percorrer espaços como a antiga praça, hoje ocupada por diversos serviços camarários e segurança social, o antigo pulmão comercial da cidade egitaniense. Recordo os diversos talhos, Talho Reduto, o do meu saudoso e estimado tio António Alves Martinho, o Talho Martinho, Homem de coração aberto, lá me entrega uns enchidos ou umas moedas, que ajudavam a pagar a viagem na Camioneta dos Hermínios até Gouveia, (os meus pais não emigraram para os Estados Unidos, nem para a Europa, apenas emigraram para Setúbal, à procura de um melhor futuro.) Calcorreámos ruas, espaços, jardins, monumentos em comum, em tempos diferentes. A este propósito, apetece-me referir as duas estrofes de um soneto que Bocage dedicou a Camões, comparando com os dele os seus próprios infortúnios “ Camões, grande Camões, quão semelhante/ Acho o teu fado ao meu quando os cotejo…”

A minha homenagem a este escritor universal, é respigar algumas passagens da sua vasta obra literária. Haveria centenas e centenas de citações, selecionei e recordo estas:

Manhã Submersa: “ lentamente o casarão foi rodando com a curva da estrada, espiando-nos do alto da sua quietude lôbrega pelos cem olhos das janelas. Até que chegados à larga boca do portão, nos tragou imediatamente, cerrando logo as mandíbulas atrás… Lentamente por fim, o dia de férias chegou. E há quanto tempo que eu o vinha esperando! No tampo da carteira, um pouco ao lado, para que nada o tapasse, colei um calendário de Dezembro; e todas as noites ao último estudo, eu esporeava o tempo, cortando o número do dia seguinte, às vezes de dois em dois, a ver se andavam mais depressa…” (Muitos reclusos e militares na Guiné também praticavam a mesma liturgia).

Para Sempre: “todo o espaço vibra, vertiginoso de memória… Suspenso da tarde, suspensa a hora na radiação fixa de tudo, o tempo. É um tempo de eternidade de sem passado nem futuro…”

Aparição: “o que me seduz no passado não é o presente que foi – é o presente que não é nunca… Pelas nove horas da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação de Évora…”

Pensar: “ ter um futuro nem que seja o de amanhã, o de cada hora, é inventar um Deus que te ponha a mão no ombro e te diga estou aqui. Mas podes inventar a eternidade na simples comoção de um olhar uma estrela. Basta que olhes pela primeira vez, depois de a teres olhado inúmeras vezes. E não precisas então de Deus nenhum para te dar o paraíso…”

Alegria Breve: “ eu e o silêncio. Só a montanha me fala ainda, mas não sei bem o quê. Fito-a intensamente, como se instintivamente a incitasse a explicar-se. Há um diálogo interrompido entre nós desde quando?… – Não sei o que tenho minha mãe. Ela varou-a de iluminação e alarme. – Não me digas! Não me digas que arranjaste outra desgraça. A “ desgraça” era eu.”

“ Há um sentido profundo em tudo isto? Não o distingo. Sentido misterioso de tragédia, aberração, delicada ternura e verdade. É o sentido do HOMEM.”

Vagão J: “ nos campos a vida grita uma plenitude de sangue fresco, o céu azul. Por isso custa morrer… A vida é o primeiro dia, é a hora, o minuto primeiro, não o momento e a hora que se somaram a outras horas e minutos.”

Celebrar o centenário do nascimento de Virgílio Ferreira é uma oportunidade para sensibilizar as gerações mais novas para a sua leitura e estudo.

Até, PARA SEMPRE.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Janeiro/2016