UM SOLDADO SAMARITANO

Nasceu em Aldeia Nova Cabo (Fundão), apesar de alguns irmãos terem nascido em Aldeia de Joanes (Quinta da Nave de Baixo) por circunstâncias ligadas às atividades agrícolas dos seus progenitores.

Ainda criança, já guardava ovelhas, atividade pastoril que se prolongou até aos dezoito anos, percorrendo os territórios dessas duas freguesias e a encosta norte da Serra da Gardunha. Cedo se apercebeu que não seria aquele o seu futuro, apesar das insistências do pai. “Sabe, esta profissão é muito difícil e dolorosa, embora haja pastores de outros rebanhos que têm uma vida regalada, que não estão próximos nem cheira o odor das ovelhas.”

No caso do nosso soldado só se aplica a primeira parte do velho adágio popular: “ser pastor no Inverno é estar no Inferno, no Verão é ter vida de lambão.” Em todas as estações do ano o trabalho é árduo e exigente, com uma dedicação diária.

Dizia eu que mal sentiu a sua maioridade largou as ovelhas, o que lhe valeu um bom corretivo do pai, sendo forçado a trabalhar no Fundão como caixeiro, ajudante de motorista e fiel de armazém na Firma F. Alçada.

Trazia o almoço de casa, às vezes não era muito apetecível, e nos intervalos desta refeição jogava ao rolho com os trabalhadores, seus vizinhos, do Jornal do Fundão.

Seguiu-se o serviço militar obrigatório e deu mais um passo na sua independência e liberdade de movimentos. A recruta foi no Batalhão de Caçadores 6 e a especialidade a de atirador e explorador no Regimento de Cavalaria 8, unidades militares sediadas em Castelo Branco (hoje extintas). Daqui seguiu viagem para o Regimento de Cavalaria 7 no Porto. Na sua ficha individual, além da especialidade, estava escrito de que na vida civil tinha sido caixeiro.

Iniciou, pois, um percurso militar que o vai marcar pela vida fora. Ao fim de uma semana de estadia no Porto, foi chamado ao Gabinete do Comandante. Um pobre soldado, sem conhecimentos das esferas militares ou de outras, um jovem soldado que nascera na Beira Baixa, pastor, caixeiro, que tarefa o esperava?

Bem fardado, calças vincadas, todo o metal da farda a brilhar, como é timbre de um soldado de cavalaria, entrou no Gabinete do Comandante. Este interrogou-o sobre a profissão de caixeiro no Fundão e ficou a saber que o militar à sua frente sabia fazer encomendas.

Na tropa as ordens são para serem cumpridas e só depois discutidas. Recebeu a guia de marcha para se apresentar na Rua Portas do Sol (Batalha) no Porto, na sede do norte do M.N.F. (Movimento Nacional Feminino), serviço dirigido pela Dr.ª Ofélia Calheiros, viúva de um oficial morto em combate em Angola.

Neste departamento, os serviços prestados às populações nortenhas centralizavam-se na entrega de aerogramas (cartas sem porte pago) às famílias dos militares que se encontravam no Ultramar e às Câmaras Municipais. Um dos trabalhos agregados era fazer diariamente uma média de vinte encomendas e respetivo expediente. Os familiares dos militares mobilizados tinham direito ao envio gratuito de duas encomendas mensais. Ora, o nosso soldado samaritano fechava os olhos à contabilidade e lá deixava seguir mais duas ou três. Entregavam naquele departamento uns mimos, que se traduziam em enchidos, presuntos, queijos, livros (de Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e tantos outros escritores portugueses), jornais desportivos e regionais, bíblias, objetos sagrados e outros, que eram empacotados e seguiam via marítima. Estas encomendas iam com o selo dos afetos, o amor de uma mãe, o abraço de um pai ou de um irmão, o beijo da namorada ou as lágrimas da mulher, as saudades dos filhos. Muitas vezes a encomenda chegava e já o destinatário morrera em combate.

Durante trinta e dois meses, repito, trinta e dois meses, o nosso soldado samaritano realizou uma missão importante nas Forças Armadas, o que motivou um louvor público com todo o mérito (naqueles tempos não se davam louvores e condecorações a torto e a direito.)

Tem orgulho de ter vestido a farda da cavalaria, mas o que mais o enobrece foi o serviço que prestou aos familiares dos militares em África, Timor e Macau. Este soldado samaritano chama-se José Joaquim da Cruz Lambelho e reside no Fundão.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Abril/2016