Ao folhear o Livro “ Volta a Portugal em 80 Dias”, escrito pelos jornalistas João Ferreira Oliveira, Jorge Flores e Rui Pelejão, e apresentado na Sala da Concha no “Casino” do Fundão, a minha memória despertou para uma viagem que começou num Natal longínquo.
O dedo no mapa indica o local de partida, Freguesia Bismula (Sabugal), arrabaldes castelhanos. Ali ouvia empolgantes histórias patrióticas e lições de fé e esperança, mas vivia longe dos meios de progresso que já existiam no litoral. Nós estávamos no nada, nas periferias de quem já tinha tudo. Era território onde o Menino podia ter nascido, se Deus não tivesse escolhido a Palestina ocupada pelos Romanos. Na maioria dos casos, era o calor do bafo dos animais que aquecia o ambiente nessas terras frias.
Apesar das carências, a Festa do Natal marcou-me profundamente. Nas vésperas ia-se com o carro de bois ao marenhol, porto cerdeira, tapada ribeira, regadas… carregava-se de lenha de carvalho, e assim, à lareira, se aquecia a noite e os dias seguintes.
À ceia comiam-se batatas com couves e pouco bacalhau, o dinheiro não dava para muito. Os meus pais cantavam canções ao Menino Jesus e seguíamos para a Missa do Galo. Após passar as mãos e os pés gelados pelo calor do madeiro, saboreávamos umas chouriças assadas no borralho, embrulhadas em papel pardo e preparadas pela minha saudosa Mãe.
Deixavam-se os sapatos junto à chaminé e, durante a noite, o Menino Jesus descia do telhado, entrava pela chaminé e colocava figos, nozes, maças camoesas e alguns doces.
A viagem da minha vida seguiu para Setúbal, onde a paisagem natalícia é bem diferente. Estávamos numa grande cidade operária e piscatória, as luzes do progresso a piscar por todo o lado. As condições materiais melhoraram, isto é, passámos da pobreza sem futuro à pobreza remediada, mas não cheirávamos mais o campo, os odores inebriantes da lenha do carvalho, do freixo, das giestas a serem queimadas, nem as panelas de ferro na lareira a fumegar. O sentido de comunidade reunida à volta da fogueira não existia mais. Além disso, o “Pater Familias” nem sempre passava o Natal em casa, pois tinha que estar de vigilância numa das maiores fábricas de celulose para matar a fome aos filhos.
Parti para a Guiné-Bissau no cumprimento do serviço militar. O Natal em cenário de guerra é inesquecível. Apesar da chegada do Príncipe da Paz, o rebentamento de armas pesadas não cessava.
O Batalhão estava de prevenção e de alerta máxima, ninguém tinha licença para sair do aquartelamento. As mensagens de Natal que nos acompanhavam eram as balas e as espingardas automáticas G3. As luzes de Natal eram os clarões do rebentamento dos morteiros, mais tarde foguetões terra – ar.
Antes de seguir para a Consoada, reunia-se a Família Militar no ringue de desporto, ouvia-se a mensagem do comandante e os militares mais vocacionados para as artes ofereciam como jograis um espetáculo de variedades (música, poesia, alguma crítica tolerável pelo regime) para uma assistência nervosa, esverdeada e camuflada. Decorria o sarau quando um militar revoltado atirou ao ar uma granada ofensiva e foi o caos. Todos pensaram num ataque do IN. Acabou-se a Festa de Natal e o irresponsável militar nos calabouços.
No segundo Natal militar, a crise no fornecimento de comestíveis chegou a algumas unidades militares guineenses. Na nossa unidade não comemos batatas e, quanto ao fiel amigo, nem espinhas para palitar os dentes. Pela primeira vez não comemos bacalhau no Natal e, como protesto (era Natal, não era o Ramadão!), o pessoal militar fez um pacto, de caixão à cova, com o Deus Baco. Se o IN soubesse, nunca mais comeríamos bacalhau na vida.
As renas do Pai Natal chegaram a Castelo Branco em 1976. Com o Diretor Geral dos Serviços Prisionais, Dr. Carlos Meira, que deixou a família em Portalegre, passei o Dia de Natal no Estabelecimento Prisional, junto dos reclusos. Também nessa cidade, um Juiz do TEP de Coimbra, mais tarde reformado compulsivamente, entendeu, na Quadra de Natal, não conceder uma única saída precária aos reclusos, o que motivou três dias de greve de fome e me obrigou a estar de serviço.
O trenó chegou à Comunidade de Aldeia de Joanes (Fundão). Lembro-me do presépio humano num Natal em que todo o povo beijou um Menino Jesus de carne e osso, no rés-do-chão da Casa Paroquial; também recordo, no exterior da Igreja Matriz, o presépio que a Caritas de Aldeia de Joanes apresentou com o apoio da Junta de Freguesia. Eram figuras extraordinárias em disposição harmoniosa, onde a solidariedade e o amor viajavam por terras e oceanos.

António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Dezembro/2014