VISITA INESPERADA

 

Parte A, quarto 3, internamento numa clínica coimbrã. Uma cama, uma mesa, uma cadeira, uma janela, uma porta, uma casa-de-banho. Há hotéis piores.

É de madrugada e levanto-me vertiginoso. Lá fora chove, é um dia triste de Outono. Sento-me à mesa de jornais espalhados e um livro aberto do José Freire: “25 anos a Alicatar Azulejo com outra arte”.

Agarro-me “azuleijado” ao catálogo deste meu amigo de longa data. E sou levado pelos pedacinhos minuciosamente alicatados até formarem uma unidade e a Memória, tantas vezes despedaçada, ganha subitamente uma inesperada presença.

Lembras-te, Zé, da nossa viagem marítima nesse Outono longínquo que nos levou a um desconhecido e trágico destino?

Estás a ver-nos, a mim, a ti e ao Lalande, os três moços beirões que partilharam a mesma “suite”?

Lembras-te dos oficiais milicianos que tomavam as suas refeições com divisas douradas ao som de música clássica?

Estás a ver o Lalande, cheio de importâncias porque os pais dominavam o CTT de Castelo Branco?

Lembras-te de falarmos de literatura, dos Beatles, dos fados da Amália, das baladas do Zeca que ouvíamos clandestinamente, mas também do canto gregoriano que aprendemos a apreciar em Seminários que não eram fábricas de Padres?

Lembras-te, mais tarde, como encontrámos os nossos Amores no Fundão?

E mais tarde ainda, também em dia outonal, lembras-te quando visitei o teu atelier com os meus irmãos Francisco e Joaquim, depois de saborear uma tarte de Azeitão regada por um delicioso moscatel de Setúbal?

Lembras-te do saco de laranjas que me deste quando os pomares ainda não tinham sido destruídos pela construção civil?

Esta manhãzinha, amigo Zé Freire, é o cheiro dessas laranjas que me sobe do teu livro colorido e invade o meu quarto a preto e branco. E sonho, acordado ou alicatado como os teus azulejos, e de repente há pássaros e flores, bordados albicastrenses, girassóis, caravelas, primeiros passos, colchas orientais, árvores da vida, passeios na floresta, violas que violam o silêncio do quarto, bichos, Guernica, esplanadas de Van Gogh, pagode chinês, ceifeiros, touros, tintim, coros de Natal, pianistas cromáticos, la belle époque, damas impressionistas, mulheres nuas, Marilyn para levantar um acamado, São Vicente de Fora, Infante D. Henrique (embora hoje prefira o infância do cavalinho), D. Quixote, bustos, jarras, cadeiras de mil cores, garrafas, brasões das cidades amadas…

Olho em redor. O teu Camilo “azuleijado” no desespero está sentado na minha cama, o Bocage em fanicos à porta, o Pessoa em cacos na casa-de-banho, o Camões doente e miserável à janela. Não tenho nada para lhes oferecer. Talvez todos se rissem se desse o “Público” ao Bocage, a “Bola” ao Camões, o “Jornal do Fundão” ao Camilo e a garrafinha de água na minha cabeceira ao Pessoa.

Dirijo-me para a janela onde já não está o poeta dos “Lusíadas”. Apenas vejo uma árvore amarela e folhas caindo como azulejos no asfalto alicatado. Carros vão e vêm, uns para o emprego, outros pôr o miúdo à escola, uns mudam de cidade, outros regressam.

De Trás-os-Montes o simpatiquíssimo Dr. Falcão:

– Passou bem a noite?

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Novembro/2017

VISITA INESPERADA

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