XXIII – Domingo Comum
“Começou a falar correctamente”

O homem surdo mal podia falar. Como não ouvia, também se exprimia com muita dificuldade. Este facto constrangia-o no seu viver em sociedade, levando-o, muito provavelmente, a viver à parte, a sentir-se diminuído e só. Algumas pessoas, que conheciam o seu sofrimento e desejosas de mudar a sua sorte, conduzem-no até Jesus e intercedem em seu favor.
Sem revelar o que pensa fazer, Jesus afasta-se com ele da multidão. Jesus quer mudar a vida do homem e quer que ele experimente a compaixão de Deus. Mas não quer dar espectáculo, não quer que as pessoas se divirtam com o milagre, deixando escapar o mais importante do mesmo. Prefere que as pessoas apenas se dêem conta do resultado, verificando como o homem regressa diferente, podendo comunicar correctamente com todos.
Jesus toca os órgãos afectados, ergue os olhos ao Céu, isto é, olha para Deus, perscrutando a sua vontade, e pronuncia uma palavra: “Abre-te”. A palavra de Jesus é eficaz, acontece como Ele manda, porque actua em plena sintonia com Deus. O milagre é obra/maravilha de Deus.
As pessoas ficam impressionadas com o sucedido. Sentem-se felizes, porque o homem pode agora comunicar perfeitamente, é agora mais livre para exprimir o que lhe vai na alma e no coração. Ao mesmo tempo, sentem-se maravilhados com Jesus. Reconhecem que há n’Ele algo de admirável, que O distingue de todos os outros mestres e O aproxima de Deus. Naquele acontecimento, as pessoas “ouviram”, entenderam, captaram algo, para além da simples cura do homem. Por isso mesmo, apesar da proibição de Jesus para que não divulgassem o facto, todos começaram a falar dele, e diziam a respeito de Jesus:”tudo o que faz é admirável”. As pessoas, porque perscrutaram no milagre o dom de Deus, anunciam a maravilha que tinham testemunhado, ou melhor, anunciam Jesus às pessoas que encontram pelo caminho.
O milagre acontece na Decápole, uma região pagã. Já antes, na região de Tiro e de Sídon, interpelado insistentemente por uma mulher pagã, Jesus libertara uma menina de um espírito maligno. Ao sair do território de Israel e ao fazer uma incursão naquelas regiões, Jesus quer mostrar que Ele e o seu Evangelho também são para os pagãos. Os pagãos eram “surdos”a Deus: não O conheciam, não escutavam as suas palavras, Deus não fazia parte das suas vidas. Por essa razão, também eram “mudos”: Deus não fazia parte das suas conversas, não falavam d’Ele nem O louvavam. Passando entre eles, Jesus quer acordar os pagãos, abrir-lhes os ouvidos e o coração ao verdadeiro Deus. Muitos deixaram-se tocar pela presença e acção de Jesus. A esses soltou-se-lhe também a língua, passando a ser mensageiros, arautos e testemunhas das maravilhas de Deus, realizadas por Jesus.
Inspirada neste episódio, na celebração do baptismo das crianças, a Igreja formula este voto: “O Senhor Jesus, que fez ouvir os surdos e falar os mudos, te dê a graça de, em breve, poderes ouvir a sua palavra e professar a fé, para louvor e glória de Deus Pai”. É primordial ouvir a palavra que conduz à fé e fortalece a fé. E, depois, é indispensável, professar a fé, vivendo de acordo com a palavra de Deus. Os baptizados, quando chegam à idade da razão, têm como primeiro dever e necessidade ouvir a palavra e conhecer Deus. Indissociável deste é o dever de professar a fé, anunciar Cristo, vivendo a palavra. Ouvindo bem, eles falarão correctamente! Sim, os cristãos falarão correctamente, quando, depois de escutarem e meditarem assiduamente a palavra de Deus, conseguirem comunicar aos outros, através das suas vidas, a linguagem da fé.
Isto nem sempre acontece. Na sua carta, São Tiago censura as comunidades cristãs que, no seu seio e nas suas celebrações litúrgicas, fazem distinção de pessoas, prestando mais atenção aos ricos do que aos pobres. Procedendo assim, contrariam o agir de Deus que privilegia os pobres, violam o princípio de que todos os homens são igualmente filhos de Deus e transgridem o mandamento do amor fraterno. “Falando” assim, não falam correctamente, pois desacreditam Cristo e a mensagem do Evangelho.
Com as distinções obsoletas que ainda sobrevivem na Igreja, a linguagem desta, por mais bem formulada que seja a sua doutrina, torna-se incompreensível, não consegue fazer passar, de um modo credível, a Boa Nova de Cristo para os homens.

Pe. José Manuel Martins de Almeida