Ver no outro o meu próximo (Lc 10,29-37)
Jesus vai a caminho de Jerusalém. É tempo da Palavra se fazer ver e compreender. Jesus responde à pergunta do escriba, especialista da Lei, sobre o que é preciso fazer para alcançar a vida eterna, fazendo outra pergunta: «Que está escrito na Lei? Como lês?» (10,26) À resposta teórica que o fundamental da Lei é o amor a Deus e ao próximo, Jesus diz ao escriba: «Respondeste bem; faz isso e viverás.» (10,28) Acreditar em Deus não é apenas saber belas doutrinas (ortodoxia), mas viver e amar à maneira de Deus (ortopraxia). O escriba, por deformação profissional, continua a insistir na definição de conceitos e teorias abstratas sobre o amor ao próximo: «E quem é o meu próximo?» (10,29) Jesus responde com a parábola do homem assaltado que desce de Jerusalém para Jericó e é assaltado, roubado, espancado, desnudado e ferido, ficando meio-morto. Perante este cenário de perigo de vida e de abandono no caminho, Jesus faz passar três personagens que reagem de forma diferente, todos fundados na Lei.
Passa um sacerdote e um levita que voltam de Jerusalém. Após quinze dias em serviço no Templo,voltam purificados e felizes pelo dever cumprido. Os dois veem o homem ferido e nu no caminho, deram uma volta e seguiram em frente. É um verbo inventado por Lucas e só aparece nesta parábola: anti-para-elthen “ir para”+”diante de”+ “à volta de”. Ou seja, o sacerdote e o levita aproximaram-se do homem, observaram-no pela frente e pelos lados, fizeram o diagnóstico da situação, e seguiram em frente sem nada fazer, além do sentimento de comiseração pelo pobre coitado. Conheciam e ensinavam a Lei, e trabalhavam no Templo, sabiam o que o fundamental é a lei do amor e da misericórdia, mas a lei do puro e impuro sobrepôs-se e impediu-os de tocar em sangue e pessoa desconhecida, impediu-os de ver neste homem meio-morto o seu próximo.
Passa depois um samaritano, um comerciante que ia de viagem. Aparentemente pouco religioso e ignorante da Lei. Ao vê-lo, comovem-se-lhes as entranhas (esplanchnisthē), que é a expressão usada para a mãe que dá à luz. A visão do homem ferido provoca no samaritano o nascimento dum irmão próximo do coração. Esta visão fecundante de fraternidade provoca exteriormente comportamentos de proximidade e compaixão: aproxima-se dele, trata-lhes as feridas, coloca-o na sua própria montada, leva-o para a estalagem e cuida dele. Assume uma fraternidade atenta, que usa o que tem ao seu alcance, não se preocupa quem é a pessoa, o que fez, donde é, qual é a sua religião, o importante é que tem à sua frente um homem a necessitar da sua ajuda. O seu olhar compassivo gerou um irmão e transformou este desconhecido no seu próximo que deve ajudar a salvar. No final paga e envolve o estalajadeiro no cuidado do ferido e promete pagar-lhe o que gastar a mais quando voltar.
Ao terminar a parábola, Jesus pergunta ao escriba: “Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?” (10,36) A questão não é saber quem é o meu próximo, mas como devo olhar o pobre ou as pessoas em geral para que eu me possa tornar próximo dele. A proximidade não é geográfica ou cultural (os não estrangeiros), mas deve ser compassiva, misericordiosa, atenta e cuidadora do que necessita de mim agora. O escriba compreendeu a pergunta de Jesus e respondeu: «O que usou de misericórdia para com ele.» E Jesus retorquiu-lhe: «Vai e faz tu também o mesmo.» (10,37) Se a Lei é uma questão de amor, então devemos aprender a aproveitar cada situação para a pôr em prática. É preciso aprender o que significa na prática a “regra de ouro do amor”: “O que quiserdes que os outros vos façam, fazei-lho vós também.” (6,31) Não se trata de dar em troca a quem nos dá, nem de dar mais importância aos sacrifícios e rituais do que à misericórdia. Trata-se de aprender a colocar-se na pele do outro, a olhar a partir do pobre e do mais fraco. Quando vivemos assim, então tornamos-nos parecidos com Deus: Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso.» (6,35-36)
Esta parábola é antecedida da oração para que haja operários para a messe (10,2) e do envio dos 72 em Missão, sem outro tesouro que não seja a boa nova do Reino de Deus. Um missionário é alguém que está sujeito a ser espancado, desnudado, ferido pelo caminho, como Jesus. O cristão, mais do que doutrinas religiosas, deve ensinar a amar, a olhar com as entranhas, a ler a Palavra de Deus para aprender a ler a realidade com solidariedade.
Quem aprende a ver com o coração, vê Jesus presente em cada irmão e cuida do pobre com a atenção dum pai-mãe, dum médico interessado, dum pastor preocupado, duma mulher que perdeu a sua dracma… Jesus está presente no pobre que geme de morte e de miséria, mas está também presente no bom samaritano que caminha nas estradas das nossas desventuras, se compadece dos nossos sofrimentos e pecados, se aproxima de nós para nos curar as feridas e se dá totalmente para que nos salvemos.
Seguir Jesus é aprender a ver com as entranhas. A caridade não tem limites nem interditos quando há alguém que precisa de ajuda e esta está ao meu alcance. É preciso envolver outros, com fez o Samaritano que procurou uma pousada e envolveu o estalajadeiro no cuidar do ferido: “Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-to-ei quando voltar.”(10,35) Fica nas mãos do estalajadeiro cobrar ou não os seus serviços, sabendo que o samaritano o faz de forma gratuita e oblativa. O testemunho gera novas formas de ver próximas e desinteressadas.
De quem me faço próximo na paróquia e na sociedade, dos ricos e simpáticos ou dos pobres e marginalizados? Esta crise tem-nos ajudado a ver com as entranhas ou levado a fechar sobre nós? Como posso organizar e envolver outros no serviço da caridade? O que é prioritário, as pessoas ou as normas?
J. Augusto, svd