UM ESCUTEIRO HERÓI
Meados de Junho, um dos dias mais quentes da época. Os termómetros em Setúbal anunciam os 45 graus positivos, grande canícula.
Os turistas invadem uma Igreja, lá esperam encontrar um clima mais ameno. O catolicismo é uma óptima religião no Verão, até os ateus se convertem para estarem mais fresquinhos à sombra do Senhor.
Entro na Biblioteca Municipal para afastar o calor, gosto do micro-clima refrescante das bibliotecas. Reparo numa tarja gigante: “É PRECISO FAZER DESENHOS!” Nas paredes estão afixados cerca de trinta desenhos sob a temática “Fora de Muros”, muitos deles são obras dos reclusos do Estabelecimento Prisional de Setúbal. São bem visíveis o desejo de liberdade, a solidão, a angústia, o medo… Vejo um dilúvio, um barco abandonado, sementes lançadas numa terra desconhecida, uma pessoa dentro de uma gaiola flutuando num rio. Na margem vemos uma cana de pesca a tentar libertar o ser humano da sua prisão…
Apesar da frescura do espaço, há como um nó na garganta que pede rega. Dirijo-me para a Tasca do Zé Maria, no Bairro Santos Nicolau, passo na rua por detrás da Igreja dos Grilos, junto à pequena porta do cemitério. Recordo a minha saudosa Mãe e encontro-me com os meus irmãos, culminando numa visita ao Chefe Artur Eugénio Silva Soares, o nosso Homem deste texto.
Com mais de cincuenta anos dedicados ao movimento escutista, o nosso Homem tem lutado diariamente, na companhia da sua dedicada esposa, contra diversos problemas de saúde – umas vezes ganha, outras vezes perde, como aconteceu quando viu a sua perna amputada.
Nasceu, cresceu e vive no Bairro Santos Nicolau, o “Bairro dos Varinos”, assim chamado porque os primeiros povoadores vieram da Murtosa (Aveiro) para trabalharem nas pescas e nas fábricas de conservas. Os seus progenitores estavam entre esses aventureiros da sobrevivência. O seu pai foi inicialmente um pequeno pescador em frágeis embarcações, mais tarde numa traineira. A mãe trabalhou durante cinquenta anos na Fábrica de Conservas “Francisco Alves e Filhos”.
Esta comunidade pertence à Freguesia e Paróquia de S. Sebastião, que ainda mantém as suas vivências religiosas e musicais muito próprias. Antes da crise das pescas, a maioria da população dedicava-se à faina piscatória. Mandaram queimar os barcos e agora são muito poucos os pescadores que vão ao mar.
A Paróquia de S. Sebastião, dos anos quarenta do século passado até aos dias de hoje, esteve sempre entregue aos Missionários Claretianos. Nos tempos de fome e miséria, destacou-se o Padre José Maria Nunes dos Santos, muito próximo das pessoas pobres, que o consideravam um Santo. Além de pescar o pão do mar, ajudava os pobres e necessitados da sua comunidade. Entregava as roupas interiores e exteriores que recebia às gente carenciadas, cobrindo o corpo apenas com uma longa batina clerical.
O Povo não esquece quem lhe faz bem, por isso erigiu uma estátua em sua homenagem no coração do Bairro Santos Nicolau.
Como era convidado para apadrinhar os muitos baptizados de gente humilde, tornou-se padrinho do nosso Chefe Artur.
O nosso Homem iniciou o seu percurso escutista aos sete anos com a promessa de Lobito, tendo como Chefe de Agrupamento a inesquecível Chefe Amélia de Jesus, no Grupo 110, mais tarde Agrupamento 59 da Paróquia de S. Sebastião, o mais antigo da cidade de Setúbal.
Aos onze anos fez a promessa de Explorador, também sob a orientação escutista de chefes de alto gabarito: Chefe José Monteiro, Chefe Farinha (um imigrante da Soalheira), Chefe Rebelo. Aos 18 anos era Caminheiro júnior e sénior.
A sua folha de serviços escutistas diz-nos que nos anos 50 começou logo a construir uma sólida formação pessoal, cristã e escutista.
Exerceu diversas funções no Escutismo na Região de Setúbal: Chefe do Departamento Comercial da Junta Regional durante vários anos; Assessor do Coordenador Regional; Chefe do Agrupamento 64 da Camarinha; Chefe do Grupo dos Pioneiros e Chefe de Exploradores; Chefe do Agrupamento 62 da Ordem Terceira, que há dias fez oitenta anos e por causas desconhecidas se encontra encerrado.
O Chefe Artur afirma peremptoriamente: “se arranjasse uma prótese para a minha perna, ainda ia abrir as portas a um Agrupamento que tem oitenta anos, e voltaria a colocá-lo ao serviço da juventude”.
O Dirigente Artur esteve sempre alerta para servir a Região de Setúbal. São exemplos da sua extraordinária missão a colaboração em dezenas de Cursos de Formação (anos 70 e 80), assim como a cooperação com várias equipas responsáveis pelos Jogos da Primavera e Acampamentos Regionais.
Por todo este historial escutista e pelas qualidades pessoais de absoluta entrega ao próximo, no 75º Aniversário do Agrupamento 62 da Ordem Terceira recebeu a Medalha de Cruz de Mérito Avelino Gonçalves, no seguimento de outras condecorações anteriormente atribuídas: Medalha de Campo de 3ª e 1ª Classe, Cruz de S. Jorge de 3ª e 1ªClasse.
Não se esconde quando questionado sobre a forma como tem encarado as dificuldades: “Deus é grande e tem-me ajudado muito, mas o ter passado tantos anos pelo Movimento Escutista criou em mim uma força capaz de vencer todos os obstáculos nesta nova e difícil caminhada.”
Ao sair da sua pequena vivenda, recordei a vida de Nick Vujicic, que nasceu em 1978 privado de pernas e braços. No seu livro “Vida sem limites” escreveu: “poderás deparar-te com tempos difíceis. Poderás cair e sentir que não tens forças para te levantar. Conheço a sensação, companheiro. Todos conhecemos. A vida nem sempre é fácil, mas quando superamos desafios tornamo-nos mais fortes e mais gratos pelas nossas oportunidades. O que realmente importa são as vidas que tocas ao longo do caminho e a forma como acabas a caminhada.”
O CHEFE ARTUR EUGÉNIO SILVA SOARES É UM EXEMPLO DE TENACIDADE, FORÇA E RESISTÊNCIA PARA TODOS NÓS.
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Junho/2017