1. O Reino de Deus (ou Reino do Céu) é o tema central da pregação/missão de Jesus. Está presente nos seus discursos e nas suas parábolas. E as suas obras, sobretudo as curas e a expulsão dos demónios, são sinais da presença do Reino de Deus no mundo dos homens (12,28). Vamos ver, partindo sempre do texto de Mateus, em que consiste o Reino do Céu e qual a atitude que o homem deve assumir face a esse Reino. Fazemo-lo, porque temos a certeza que Deus quer que também nós conheçamos por dentro os mistérios do Reino do Céu (13,11).
Segundo Mateus, Jesus começou a sua pregação, dizendo: “Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu” (4,17). Curiosamente, são as mesmas palavras que João usou na sua pregação: “Naqueles dias, apareceu João, o Baptista, a pregar no deserto da Judeia. Dizia: «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu.» (3,1-2). Na boca de João, estas palavras apontam claramente para Jesus. João tem consciência que Jesus está prestes a dar início ao seu ministério público. E sabe que, com Jesus, vai tornar-se efectiva a realeza de Deus no mundo dos homens, aquela realeza de que falava o Antigo Testamento em relação ao povo de Israel.
No seguimento da escolha dos primeiros discípulos (4,18-22), Jesus “começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando entre o povo todas as doenças e enfermidades” (4,23). Trata-se de um resumo da actividade missionária de Jesus. Mais à frente, Mateus volta a dar-nos um resumo semelhante: “Jesus percorria as cidades e as aldeias, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando todas as enfermidades e doenças” (9,35). Destes textos resulta claro que o essencial da missão de Jesus é o anúncio do Evangelho do Reino e que este anúncio é acompanhado por obras (as curas). Por outras palavras: Jesus anuncia e torna presente o Reino de Deus entre os homens.
2. Fixemo-nos na expressão: “o Evangelho do Reino”. A palavra “evangelho” significa mais do que uma simples “boa nova”, “uma boa e alegre notícia”. Tendo em conta o uso do termo aplicado às proclamações dos imperadores, devemos entender o Evangelho como uma mensagem cheia de autoridade, capaz de transformar o mundo para o bem. Mais, o Evangelho é acção, força eficaz, que entra no mundo para o salvar e transformar. E o conteúdo central do “Evangelho” é este: “está próximo o Reino de Deus”.
“Ao falar do Reino de Deus, Jesus simplesmente anuncia Deus, o Deus vivo, que é capaz de agir concretamente no mundo e na história e agora mesmo está em acção”. Deus existe e tem nas suas mãos os cordelinhos do mundo. Deus age agora; esta é a hora em que Deus, de uma forma que supera todas as modalidades anteriores, se revela na história como o seu Senhor, como o Deus vivo. Segundo o Papa, em vez de falar de “reino de Deus”, seria mais adequado falar da soberania ou do domínio de Deus”. Esta soberania ou realeza de Deus manifesta-se na presença e acção de Jesus no mundo. Na verdade, através de Jesus, Deus entrou na história de modo completamente novo, aqui e agora, como Aquele que opera. Em Jesus, agora é Deus que opera e reina de maneira divina, reina através do amor que vai “até ao fim” (Jo 13,1), até à cruz (Jesus de Nazaré – 95).
Dito de outro modo: o Reino do Céu é Deus, através de Jesus, a agir no mundo dos homens para que este (mundo dos homens) seja o mundo que Ele (Deus) sonhou para eles – um mundo segundo a medida do seu amor por eles. É o actuar da vontade de Deus, dos seus desígnios, do seu projecto relativo à vida e á história dos homens, de modo a tornar-se efectivamente o Senhor do mundo, do homem e da história.
A expressão “Reino do Céu” ou “Reino de Deus” também se aplica ao mundo de Deus – aquele mundo que Deus quer dar aos homens como herança eterna (o que nós chamamos Céu ou vida eterna). Acolher o reino de Deus, ou seja, aceitar Deus como Senhor, vivendo segundo a sua vontade é o caminho necessário e seguro para chegar ao Reino que Deus quer partilhar connosco por toda a eternidade.
3. No Sermão da Montanha (5-7), do qual as Bem-aventuranças (5,3-12) são como que o pórtico, Jesus apresenta o programa do Reino do Céu, ou seja, revela a vontade de Deus, o modo como Deus quer reinar e ser Senhor, o modo como Deus quer transformar o mundo dos homens para que este seja o reflexo do seu próprio mundo, o mundo do Céu.
Na verdade, ao longo deste discurso, Jesus indica ao homem o que deve fazer, o modo como deve viver, os valores que deve cultivar, as atitudes e os sentimentos que deve assumir nas suas relações com Deus e com o seu semelhante, para acolher o reino de Deus, para o tornar presente e o ajudar a construir na sociedade, e para o receber, depois, como a grande recompensa de Deus.
Jesus concretiza: o Reino de Deus pertence, ou melhor, pertencem ao reino de Deus aqueles que vivem segundo o espírito das Bem-aventuranças. Deixa isso bem claro na formulação da primeira e da oitava: “porque deles é o reino do Céu” (5,3.8).
Jesus sublinha também a relação estreita entre Reino do Céu e vontade de Deus. Na oração do Pai-Nosso estabelece um paralelismo perfeito entre as súplicas “venha o teu Reino” e “faça-se a tua vontade” (6,10). O Reino vem ao mundo, torna-se realidade na vida do homem só na medida em que este aceita que nele se faça a vontade de Deus. Esta vontade de Deus (os desígnios de Deus, o projecto de vida que Ele tem para nós) é dada a conhecer por Jesus (muito especialmente no Sermão da Montanha). O Reino não acontece, se o pedes a Deus mas não o acolhes na tua vida, se não aceitas os desafios que ele encerra para ti, se não te identificas com a vontade de Deus. Pelo contrário, só acontece quando existe sintonia e comunhão entre a tua vontade e a vontade de Deus, quando a tua vida é o reflexo do querer de Deus a teu respeito. Mais à frente, mas ainda neste discurso, Jesus voltará a insistir: “«Nem todo o que me diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está no Céu” (7,21). Devemos entender estas palavras de Jesus à luz das que diz imediatamente a seguir: “Todo aquele que escuta estas minhas palavras e as põe em prática é como o homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha” (7,24). Podemos concluir que a vontade de Deus, que o homem deve fazer, é revelada nas palavras de Jesus, na base das quais o homem deve edificr toda a sua vida. construindo a sua vida na base da palavra de Deus, o homem está a construir o Reino do Céu.
O Reino de Deus, por ser indissociável do próprio Deus, merece o primeiro lugar na vida do homem: “Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo” (6,33). Estamos, em certa medida, perante uma reformulação do primeiro mandamento da Lei. Se o Reino de Deus se torna efectivo, se Deus é colocado e amado sobre todas as coisas, se o homem deixa que Deus seja o Senhor da sua vida e da sociedade, então, com o Reino de Deus lhe virão todos os bens de que precisa, pois o reino de Deus, como nos lembra o prefácio da solenidade de Cristo Rei, é um Reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz.
4. Mateus conta várias parábolas para explicar o mistério do Reino de Deus (13,1-52). A parábola do semeador mostra, por um lado, que o Reino de Deus está condicionado pela a atitude que o homem assume face a ele. Por outro, mostra como é particularmente eficaz, quando o homem o acolhe na sua vida.
Depois, a parábola do joio e do trigo e a parábola da rede (rede que apanha toda a espécie de peixes) sublinham a coexistência de bons e de maus até ao fim do mundo. Deus não elimina os maus nem encurta as suas vidas, como gostariam que fizesse aqueles que se consideram justos. Deus respeita a liberdade dos homens, mesmo quando escolhem viver sem Ele ou contra Ele. Só no fim serão responsabilizados pelas suas opções e suportarão as respectivas consequências.
A parábola do grão de mostarda mostra o contraste entre a pequenez do início e a plenitude do fim. Por sua vez e na mesma linha, a parábola do fermento mostra o contraste entre a pequena quantidade do fermento e a da massa a levedar. Estas parábolas reflectem, até certo ponto, o mistério da Encarnação. Jesus, na simplicidade e humildade da sua natureza humana esconde todo o poder e eficácia da sua divindade.
Finalmente, as parábolas do tesouro e da pérola mostram que o Reino de Deus é o tesouro mais valioso, aquele ao qual o homem deve subordinar toda a sua vida e todos os seus bens. Podemos dizer que esse tesouro é o próprio Jesus. Na verdade, há um paralelismo entre o que é pedido ao homem para adquirir o tesouro do reino do Céu e aquilo que lhe é exigido para seguir Jesus. Jesus e o reino do Céu são realidades indissociáveis.
5. Ainda através de parábolas, Jesus fala da universalidade do Reino do Céu. O Reino do Céu, contrariamente ao que pensavam os judeus, não tem apenas em vista o povo de Israel, mas estende-se a todos os povos da terra. Na parábola dos vinhateiros homicidas (21,33-46), depois de descrever e censurar a infidelidade dos judeus (os primeiros destinatários do Reino), Jesus afirma: “O Reino de Deus ser-vos-á tirado e será confiado a um povo que produzirá os seus frutos” (21,43).
Por sua vez, através da parábola do grande banquete (22,1-14), Jesus transmite a mesma ideia: os judeus foram os primeiros convidados, mas, por diversos motivos, recusaram o convite, não reconheceram nem aceitaram Jesus. O convite é, depois, dirigido a todas as pessoas, independentemente da sua proveniência ou condição.
Porque o Reino de Deus é para todos, o “Evangelho do Reino será proclamado em todo o mundo, para se dar testemunho diante de todos os povos”, garante Jesus aos apóstolos, quando lhes fala de perseguições e do fim do mundo (24,9-14).
6. Finalmente, temos as parábolas em que Jesus relaciona Reino de Deus com a segunda vinda do Filho do Homem, o julgamento e plenitude da história. A parábola das dez virgens (25,1-13) alerta para a necessidade de estar sempre preparados e vigilantes para ir ao encontro do Senhor e poder entrar na “sala das núpcias”, pois este virá sem anunciar previamente a hora de chegada.
Através da parábola dos talentos (25,14-30), Jesus sublinha que cada um deve pôr a render os dons recebidos de Deus e será julgado e responsabilizado por isso. Só quem faz a sua parte na construção do Reino de Deus entrará “no gozo do Senhor”.
Na última parábola (25,31-46), Jesus apresenta-se como Rei (o Filho do Homem sentar-se-á no seu trono de glória) e como Juiz (separará as pessoas umas das outras). Aos que tiverem praticado as obras de misericórdia, o Rei e Juiz dirá: “Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo” (25,34). Aqui, o Reino é manifestamente o Céu, o mundo de Deus, a vida eterna. O Reino que está preparado como herança para os homens é o próprio Deus. Deus, através de Jesus, trouxe o seu mundo divino até ao mundo dos homens (o Reino do Céu), para que os homens, aderindo à proposta de Deus e comprometendo-se com ela, possam atingir a plenitude desse Reino, ou seja, viver eternamente com Ele.
7. Mais em concreto, qual a atitude que o homem deve tomar face ao Reino de Deus?
A primeira, apontada por João e por Jesus e que implica todas as outras, é a conversão: “convertei-vos”. A conversão, tendo presente o significado do verbo grego, significa mudança de mentalidade. A Conversão a Deus implica conformar a mente, a vontade e o coração com a verdade, os desígnios e o amor de Deus. Consequentemente, o homem passa a olhar Deus, o mundo, os outros, a vida e as coisas segundo a perspectiva de Deus. O homem passa a pensar, a querer e a amar como Deus pensa quer e ama. Assim, o homem mostra-se disponível para agir em sintonia com a vontade de Deus (a palavra de Deus, os mandamentos, os ensinamentos de Jesus), exigência fundamental do Reino.
Já vimos, no decorrer da nossa exposição, a íntima relação existente entre reino de Deus e cumprimento da vontade de Deus. Também frisámos a primazia que o homem deve dar ao Reino de Deus. O homem deve subordinar tudo ao Reino, a sua vida e os seus bens, equivalente ao deixar tudo para seguir Jesus.
A um jovem, que lhe tinha perguntado o que devia fazer para alcançar a vida eterna, Jesus, depois de lhe ter indicado os mandamentos, propõe: “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me.» (19,21). Vendo que o jovem se retirou entristecido com a proposta, Jesus comentou: “Em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no reino do Céu” (19,23). Este episódio mostra, de um modo inequívoco, a identificação entre vida eterna e reino do Céu, entre as exigências para seguir Jesus e exigências para entrar no Reino do Céu.
O reino de Deus exige que o homem o acolha com a simplicidade característica das crianças: “Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu” (18,3-4). O reino de Deus, por não ser como os reinos deste mundo, não pode ser olhado como uma oportunidade de poder e de grandeza, como pensava a mãe dos filhos de Zebedeu (20,20) e os apóstolos (20,24). No reino de Deus, o primeiro é aquele que está disposto a ser servo de todos (20,27).
O Reino do Céu pertence á categoria dos mistérios nos quais Jesus está a pensar quando diz ao Pai: «Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos” (11,25).
8. O reino de Deus e a Igreja. Jesus quis a Igreja e que esta fosse sinal e, ao mesmo tempo, estivesse totalmente ao serviço do Reino do Céu. Aos apóstolos, que Ele escolheu e constituiu como o primeiro núcleo da Igreja, Jesus, logo no primeiro envio, confiou a missão: “proclamai que o Reino de Deus está próximo” (10,7). A missão final situa-se na mesma linha. Não podia ser de outro modo, uma vez que os apóstolos são chamados a continuar a missão do próprio Jesus. E amissão de Jesus, como temos vindo a repetir, é a de anunciar e tornar presente o Reino de Deus.
Mas a Igreja, depois que se organizou e estruturou segundo o modelo do império romano, passou a olhar-se mais em função de si mesma do que em função do Reino, mais preocupada em manter o seu poder do que em fazer crescer o Reino de Deus, em ter funcionários que garantam o funcionamento das suas estruturas do que servidores do Reino.
Ainda hoje, a Igreja repensa a sua pastoral, mas não se repensa a si mesma à luz da palavra de Deus; fala de uma nova evangelização mais para fora do que para dentro dela mesma. O que parece estar em causa e constituir o grande objectivo de tudo isso é perseverar a Igreja como é e fazer voltar as pessoas ao como era antes. Assim, ainda hoje, temos uma Igreja que é mais massa do que fermento, mais eclesiástica do que apostólica, mais romana do que católica, mais hierárquica do que fraterna, com muita visibilidade mas que irradia pouca luz no mundo, muito dogmática mas pouco fiel a Cristo e ao seu Evangelho. Uma Igreja que se multiplica em actividades pastorais e acções de assistência social, mas não consegue contagiar o mundo com a vida de Deus e os valores do Reino.
Reino De Deus, Igreja e salvação eterna. Segundo a Igreja, a salvação parece depender mais das práticas religiosas e do agir moral, concentrando-se sobretudo no que se refere ao sexto e nono mandamento. Desde a perspectiva do reino, a salvação depende essencialmente do viver segundo o mandamento do amor, ou seja, do empenhamento na construção da sociedade humana segundo os valores do reino de Deus, segundo a vontade, os desígnios, o projecto de Deus. Isso resulta evidente, desde logo, nas bem-aventuranças. Depois, na resposta que Jesus dá ao jovem que lhe pergunta o que deve fazer de bom para alcançar a vida eterna (19,16-19). Finalmente, ao apontar o cumprimento das obras de misericórdia como o único requisito para o homem receber o Reino de Deus como herança eterna.
É certo que para viver assim, segundo o amor de Deus, o homem precisa de viver em comunhão com Ele e fortalecer a sua fé mediante a oração e a celebração dos sacramentos. No entanto, o determinante e decisivo é o amor. Mais fé e menos religião, mais amor e menos leis, mais serviço e menos estruturas de poder, menos Igreja e mais Reino de Deus.
Pe. José Manuel Martins de Almeida