“… também somos herdeiros de Deus”
No discurso que dirige ao povo, Moisés tenta incutir no coração de todos os israelitas que o verdadeiro Deus, Aquele em que eles acreditam, é um só. Na verdade, a fé do povo de Israel, fé que o distingue de todos os outros povos, assenta na unicidade de Deus: “é o único Deus … e não há outro”. O Deus de Israel é o único Deus que existe. Os outros deuses apenas existem na imaginação dos homens e a sua realidade limita-se às imagens esculpidas que os homens fazem deles.
Este único Deus é o Deus que criou o mundo e o homem; o Deus que fala com os homens e os trata como amigos; o Deus que escolhe Israel como seu povo, intervém e realiza obras extraordinárias em seu favor, liberta-o da terra do Egipto e mantém com ele uma relação privilegiada ao longo da sua história. Este único Deus surpreende e maravilha! Um Deus assim convém ao homem e merece ser acreditado e amado por ele. De resto, é isso mesmo que Deus quer e espera: ser reconhecido e aceite como o único Deus e ser amado com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças (Dt 6,4-5).
Este único Deus tem um Filho! Uma surpresa e, à primeira vista, um grande paradoxo! Esta é, sem dúvida alguma, a maior e menos esperada revelação de Jesus: Ele é o Filho amado de Deus. Deus confirma-o, quer no contexto do Baptismo de Jesus (Mc 1,11) quer no da sua Transfiguração (Mc 9,7). Jesus revela que entre Ele e o Pai existe um conhecimento recíproco e total (Mt 11,27). Mais, afirma que existe uma unidade perfeita entre os dois, como sendo um só (Jo 17,22). Manifesta e prova ainda que tem o poder exclusivamente divino de perdoar os pecados dos homens, curando o paralítico (Mc 2,1-12).
Estes ditos e factos levam muitos judeus a acusar Jesus de blasfemar. Eles não conseguem entender, muito menos aceitar que a unicidade de Deus possa ser compatível com esta filiação divina de Jesus. Porém, muitos outros, como Pedro (Mt 16,16) ou o centurião romano (Mc 15,39), descobrem e confessam que Ele é realmente o Filho de Deus.
O único Deus é Pai e Filho! Mas as surpresas não ficam por aqui. Na etapa final da sua missão, Jesus anuncia aos apóstolos que Ele e o Pai enviarão ao mundo o Espírito Santo, apontando qual será a sua respectiva missão, como vimos no precedente comentário. O Espírito Santo é o Espírito da verdade e do amor que procede do Pai e do Filho e que partilha o mesmo ser e a mesma vida. O mandato de baptizar e o modo como é formulado: “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, deixa bem claro que o Pai, o Filho e o Espírito Santo se situam no mesmo nível do ser e do agir, e que as três pessoas divinas querem e actuam, de igual modo, a salvação dos homens que acreditam.
“… também somos herdeiros de Deus”. O único Deus, o Deus que é uma família, quer agregar os homens à sua família divina, fazer de todos eles seus filhos e herdeiros. Na verdade, aqueles que acreditam em Cristo e são baptizados no Espírito Santo nascem como filhos de Deus. Não admira, por conseguinte, que o Espírito dê testemunho “de que somos filhos de Deus” e nos capacite para invocar e chamar Deus “Abba, Pai”, ou seja, nos ajude a tomar consciência e a viver a nossa filiação divina. E, na medida em que vivemos como filhos, o que implica identificar-nos com Cristo também no sofrimento, tornamo-nos com Ele herdeiros de Deus.
A herança de Deus não é apenas o que receberemos d’Ele após a nossa morte. Já durante esta vida, nós herdamos Deus: o mundo que habitamos e desfrutamos; os talentos e capacidades com que nos dotou; as graças e a vida divina que nos comunica, de modo especial, através dos sacramentos; o amor que partilha connosco através das pessoas que percorrem os nossos caminhos ou nos acontecimentos da vida quotidiana. Após a morte, vem a vida eterna. Esta não é um mero viver para sempre. É, muito mais, o viver em Deus, no seio da família divina, usufruindo plenamente do seu amor infinito. “Somos herdeiros de Deus”, ou melhor, Deus é a nossa herança! Não é algo que recebemos de Deus, mas é Deus que se oferece totalmente a nós. Quando chegar esse momento, compreenderemos a lógica e sentiremos a vantagem de o único Deus ser Trindade!
Padre José Manuel Martins de Almeida