QUOTIDIANOS HOSPITALARES – PARTE 1
Estou a organizar os meus apontamentos quando me chega do Porto a notícia do falecimento do Dr. Manuel Leal Freire, meu parente, amigo e conterrâneo. Era um Bismulense que amava a sua terra natal, um vulto ímpar na Cultura, na Literatura e no Direito deste país. Tive a sorte de conviver muitas vezes com este Homem, um erudito cheio de humor com uma memória de elefante. Como toda a alma grande, também tinha a sua costela boémia, e ainda há gente que se lembra dele nos telhados da Bismula a improvisar versos ao Vinho e ao Amor. A minha Esposa também recorda o seu último julgamento na Sertã, ele como brilhante Advogado, ela como Assistente Social. A inteligência e o riso eram inapeláveis.
Além dos afectos e sementes beirãs que distribuiu pelo país fora, deixa-nos vários livros e artigos de grande sabedoria, que mereciam uma maior divulgação. A Bismula, suas memórias e histórias, deve-lhe muito, pelo que será de inteira Justiça atribuir-lhe o nome de uma rua nessa aldeia, diria mesmo que é um dever e uma obrigação.
Sei que o Dr. Leal Freire nunca morrerá, mas não evito chorar a sua partida com os versos de João de Deus no meu caderninho: “A vida dura num momento/Mais leve que o pensamento/A vida leva-a o vento/A vida é uma folha que cai!”.
Encaminho-me para uma palestra sobre Espiritualidade, organizada por uma Irmã Religiosa, grande dinamizadora de colóquios sobre o Espírito Santo. O tema, da autoria do Padre Jesuíta Nuno Tovar de Lemos, é “Quem é Deus?”. Deus energia? Deus universo? Deus marionetista? Deus polícia? Deus companhia de seguros? Deus relojoeiro? Deus principezinho? Refutadas as hipóteses, a conclusão surge naturalmente: Deus é AMOR.
Fico a saber que as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus já vão no 5º Festival Internacional de Cinema de Saúde Mental, onde são apresentados filmes de todo o mundo. O último foi em Outubro/2017, passando pelas cidades de Lisboa e Faro. Na sala verde, onde o busto de S. Bento Menni acolhe as palavras garrafais “FAZES O BEM, BEM FEITO”, está reunido um Grupo de Proactivas: querem criar um Coro e realizar uma curta-metragem.
No final da refeição, antes da oração conjunta, alguém com graves problemas de memória pede a palavra à enfermeira-chefe e dirige-se a todos os companheiros e companheiras: “Quero agradecer a forma como fui acolhido nesta Casa e o ambiente familiar, afectivo e solidário entre todos. Somos uma grande família.”
Numa separata do “Correio da Manhã” encontro uma fotografia de 1956, tirada no Fundão. São soldados amontoados à janela dum comboio a caminho da Índia. O autor é o célebre fotógrafo fundanense ROSEL (Fernando Henriques Duarte), com estúdio na Rua da Cale (Fundão), que registou vários acontecimentos no concelho do Fundão. Tive o privilégio de o ver fotografar o meu casamento em Aldeia de Joanes e, mais tarde, os meus filhos. A fotografia ainda não se banalizara (como hoje), tinha algo de sagrado e irrepetível, por isso sempre me encantou ver essas fotografias antigas de casamentos ou baptizados, por vezes num preto e branco de grande expressividade como se captasse a alma das pessoas e não apenas a aparência. E, mais espantado fico, porque estes fotógrafos nunca se auto-intitularam de artistas, apenas cumpriam o seu ofício. O Aires, filho deste ROSEL, continua a ter a casa aberta, que é acima de tudo um enorme ficheiro da nossa memória colectiva.
É hora dos exercícios físicos na sala de fisioterapia. Alguém, vindo do Algarve, tem os músculos tão entorpecidos que só consegue exercitar a língua com o vernáculo português. Rio-me e digo-lhe: “Com tantos palavrões até parece do Norte, carago. Músculo na língua não lhe falta”.
O convívio continua no Bar. Uma mulher casou-se com um pescador que era atleta num clube distrital. Deprimiu porque ele se meteu no garrafão e pescou uma amante, “que lhe dá sopas todos os dias.”
Uma pessoa da zona de Leiria pratica karaté todas as horas, gostando de colaborar com as enfermeiras e as auxiliares: “Não passei do cinturão amarelo devido ao haxixe e à pobreza”.
Outra diz que foi motorista de camiões TIR, correu a Europa, foi atleta de salto à vara, fala diversas línguas e também diz ter sido médica em França.
Outra só tem lágrimas nos olhos azuis.
– Porque é que está a chorar?
– Estou apaixonada há 15 anos, mas ele só vive para a Mãe.
Ofereço-lhe um poema de Fernando Pessoa, cantado por Zeca Afonso, com os versos: “no comboio descente/vinha tudo à gargalhada/uns por verem rir os outros/e os outros sem ser de nada/no comboio descendente de Queluz à Cruz Quebrada.”
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Janeiro/2018