O meu parente, conterrâneo e amigo era natural da Bismula, nascido em 1928, filho de um Pai guarda-fiscal e de uma Mãe doméstica. Vivia paredes meias com a casa dos meus pais, na Relva, numa bonita habitação em granito.
Logo que fez a quarta classe foi para o Seminário do Fundão (hoje Hotel Príncipe das Beiras). Aí, como um humanista renascentista, aprendeu muito bem o latim e o grego. Mais tarde, era frequente ouvi-lo em tribunal citar frases clássicas, em grego ou em latim, no seu ofício de Advogado.
Foi expulso do Seminário do Fundão no quinto ano devido a uma simples brincadeira de Entrudo. Vestindo uma batina, uma sobrepeliz, e munido de um penico com “água benta”, resolveu benzer todas as camaratas. Esta história era contada às gargalhadas nos Encontros Anuais dos Ex- Alunos do Seminário do Fundão, onde não faltava a boa disposição deste Homem.
O Dr. Leal Freire era um puro beirão e nada lhe metia medo. Recordo as noites de Estio quando ele cantava cantigas trovadorescas de Amor, mas também de Escárnio e Maldizer, na escadaria granítica da sua morada.
Matriculou-se na Escola do Magistério da Guarda, tirou o Curso de Professor, deu aulas em Escolas Primárias e Secundárias, na “Egitânia” e em Castelo Branco. Foi Secretário do Governo Civil da Cidade dos Efes. Ingressou na Faculdade de Direito em Lisboa e dada a sua inteligência tirou o Curso num ápice, ainda estudando Filologia Clássica na Universidade.
Em 2010, a Câmara Municipal do Sabugal e a Assembleia Municipal atribuíram-lhe a Medalha de Mérito Cultural. Aguardo agora, com ansiedade e curiosidade, que o poder político da Bismula lhe preste uma homenagem mais do que merecida, dando o seu nome a uma rua da sua amada Aldeia.
Em 1969 publicou o livro “Por Terras do Sabugal”, uma obra de grandes referências culturais e vivências das gentes raianas. O Dr. Manuel Leal Freire nunca poupou esforços e sacrifícios na divulgação e preservação do Património Cultural das suas gentes, nunca esqueceu as suas origens, os costumes sagrados e profanos. Os seus textos publicados no “Cinco Quinas”, na “Capeia Arraiana” e no “Nordeste” são disso testemunho vivo. Pedindo as palavras da mensagem de condolências da Câmara e Assembleia Municipal do Sabugal, era um “Artista da palavra escrita na sua proverbial eloquência”.
Em 1976 publicou um livro de poemas – “Coração Poeta”-, em 1996 “Ribacôa em Contra Luz” e “Contrabando, delito mas não Pecado”, em 1999 um livro de contos “Cantigas da Pátria Chica” e muitos outros se seguiram da sua admirável escrita, além de vários artigos científicos sobre Direito Civil e Criminal.
Amante da gastronomia, projectou a Confraria do Queijo da Serra (tinha centenas de ovelhas na Quinta de Santo António, junto a Gouveia) e pertencia à Confraria do Bucho Arraiano, tão do agrado dos portugueses, em especial dos beirões do Planalto do Côa.
Colaborou com as Santas Casas do Porto e de Lisboa e foi Presidente da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia da Bismula, da qual elaborou os Estatutos.
Várias vezes calcorreámos os caminhos da Raia, à procura de ar puro, das paisagens da nossa infância, dos amieiros e das ribeiras da Bismula. Andar com o Dr. Leal Freire era como levar para o campo uma enciclopédia viva de histórias antigas, que ele contava com muita graça e talento verbal. E da Alta Cultura saltávamos depressa para a bisca lambida no café do José Vaz ou, melhor ainda, para uma sueca numa adega de vinhos generosos.
No Salão da Junta de Freguesia da nossa Aldeia, foi o Dr. Leal Freire quem apresentou o Livro do meu Irmão Ezequiel Alves Fernandes, “Pater Familias”, um livro de Amor de um Filho para o Pai.
E tantas vezes brinquei com os filhos do Dr. Leal Freire, nem sempre as brincadeiras acabavam bem e, como ninguém gosta de perder, as pedras voavam.
No dia 24 de Janeiro desceu à terra para o eterno descanso, deixou muitos amigos, que um dia se juntarão a ele.
Os seus dois últimos sonetos foram recentemente publicados na “Capeia Arraina”. O meu grande BEM – HAJA a este Homem levado pelos “Pássaros”:
PÁSSAROS
Vai ainda bem alta a madrugada
Mas ouve-se o trinar do rouxinol
Como que a dar o lamiré à passarada
Que só desperta com o arrebole
Aí está uma melodia orquestrada
Melhor não se faria no Tirol
Por ser tão perfeita e bem timbrada
Nem que fosse por todo um escol
Os anjos, os arcanjos e os santos
Envergando os seus espessos mantos
Em louvores à Santíssima Trindade
E assim o coral do dia a dia
Repete a harmoniosa melodia
Que nos convida para a santidade
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Existem pássaros palradores
Exemplo são a pêga e o papagaio
Que repetindo-se todas as horas
Vivem como que perene ensaio
Mas não são aves canoras
Como as que alegram o mês de Maio
Bem ao invés são aves maçadoras
Que não se calam ainda que caia um raio
Contra elas se queixaria Flomela
Da qual a melodia é tão bela
Que é esse o nome grego do rouxinol
Homero e com ele um coro enorme
Harmonioso, mesmo poliforme
Como que dão brilho ao sol
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«Poetando», Manuel Leal Freire
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Fevereiro/2018