AS BARRAGENS
Em pouco tempo de nascença, a gatinhar pelos campos da minha aldeia – Bismula (Sabugal) -, acompanhado pelos meus Pais, iniciei os primeiros contactos com barragens (armazenamento de águas), sem no entanto as saber localizar ou nomear.
A minha aldeia é cercada por duas ribeiras, a Ribeira da Nave, na fronteira com terrenos de Ruivós, e a Ribeira do Pereiro, caudal vindo de Alfaiates. Ambas vão desaguar ao Rio Côa, não muito longe de Badamalos.
Há quem defenda que o nome Bismula significa “terra entre duas ribeiras”, outros que vem do árabe, e até inventaram que as gentes da minha terra, durante as Invasões Francesas, roubaram duas mulas carregadas de dinheiro para pagamento de salários aos militares napoleónicos e outras despesas.
Na minha aldeia havia muitas barragens em miniatura. Quem, com a minha idade, não acudia ao chamamento dos Pais para deitar a represa? Era um pequeno reservatório de água, na frontaria com uma grande pedra de granito e uma saída de água para regar as hortaliças e não só. Os meus Pais tinham três, a principal na Tapada do Marenhol, que regava o linho, planta linda, esguia, com flores azuis celestes. Nas encostas dessa represa, encostada a um muro, lembro-me de uma perdiz que aí chocava muitos ovos, de onde nasceram mais de uma dezena de perdigotos. Não se assustava, ela via-me e eu via-a. Tínhamos um pacto de boa vizinhança, selado a coaxar de rãs e voos de libelinhas.
As outras duas represas eram no Chão da Cruzinha – para regar milheiral, batatal, feijão… -, e no Caminho do Carvalhal, no Vale da Areia, de onde se deslumbrava o majestoso Castelo Medieval de Vilar Maior. Para chegar rápido, tinha um arco com uma gancheta. Fazia-o deslizar mais depressa do que uma bicicleta estética numa sala de fisioterapia.
Hoje, agora e aqui, recordo-o no arco que treino para as Marchas dos Santos Populares. O mundo, nós, damos tantas voltas, muitas mais que os arcos da minha aldeia ou dos Santos Populares
Havia poços, mas os reservatórios mais importantes eram os açudes com comportas. Estas pequenas barragens eram de uma importância vital para a economia rural e doméstica e para o ecossistema. Era principalmente naqueles espaços aquáticos que tomávamos banhos, víamos pica peixes, ave lindíssima, as galinholas, animais em vias de extinção. Alimentavam amieiros, freixos… faziam rodar as mós dos moinhos, forneciam água para regar veigas quase todo o ano. No Inverno regavam ervas, a “ferrã”, os nabos para os animais, também aproveitados para consumo doméstico.
A única vez que vi lobos a comer erva aconteceu numa manhã fria de janeiro, na Tapada Ribeira, dizia o meu saudoso Pai: “estão a desenfastiar e também precisam de lavar os dentes.”
Esses açudes, em pequenas levadas como dançarinas num corridinho ribatejano, abasteciam sementeiras de produtos agrícolas, ervas para os animais, e ainda alimentavam viveiros fluviais, onde a natureza produzia as célebres merujes, das quais se faz uma maravilhosa salada para acompanhar o bucho arraiano ou outros pratos fronteiriços.
Ontem como hoje não souberam aproveitar estes recursos naturais, as suas gentes partiram e não vejo volta a dar.
Agora fala-se em construir novas barragens, mas ainda não vi no mapa dos empreendimentos uma barragem a poente da Serra da Gardunha, na parte superior do Souto da Casa, que daria da mais pura água do País. Para quando? Talvez nunca… Algo me diz que a futura guerra entre os povos será por causa da água…
Tenho saudades dos poços, das presas e represas, dos açudes da minha aldeia… da água pura daquele materno território.
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Junho/2018