O ARREPENDIDO

Reconhecemo-nos mutuamente, por um mero acaso, numa das avenidas da Bela Vista, à porta do Restaurante Social da Cáritas de Setúbal, anexo à Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, onde os pobres e necessitados não são esquecidos.

Já lá vão muitos anos desde que partilhámos a mesma “casa”, embora com vivências bem diferentes: eu na direcção de uma instituição prisional, ele a cumprir pena por falsificação de moedas e tráfico de droga.

Olho o nosso Homem dos pés à cabeça, hábito profissional… Tem um ar pesado, acabrunhado pela idade e pelas doenças que o acossam, rugas no rosto, olhos cavados e uma velha mochila às costas carregada de nada.

Conta-me que é de descendência espanhola, das Terras de Castela e Leão. Os seus avós maternos, juntamente com a filha de tenra idade, fugiram da Guerra Civil Espanhola por não se reverem nas ideias franquistas. Conhecedores da fronteira portuguesa, refugiaram-se no interior do Portugal profundo com a conivência de uma família lusitana.

Com o andar dos tempos, o avô conseguiu empregar-se nas Minas da Panasqueira, mal adivinhando que o volfrâmio que arrancava no interior da mina servia para alimentar a máquina dos fascistas espanhóis e dos nazis.

A sua filha enamorou-se de um mineiro das redondezas do Fundão, casaram e desse amor nasceu o meu interlocutor, numa aldeia semelhante a uma “pocinha”, um fundo cercado por serranias.

Como a vida de mineiro é dura e a mãe era doméstica, resolveram pegar na trouxa e vir para as Terras de Santa Luzia. Aí disfrutaram de casa e terreno agrícola, abraçando a arte de funileiro, sempre é melhor que ser toupeira…

O nosso protagonista foi estudar para a Covilhã. Atendendo à sua moldável personalidade, foi aliciado para a vida do crime, da qual obteve bons proveitos até cair nas malhas da justiça. Condenado a uma pena adequada, não lhe restou outro horizonte senão o pátio da prisão. Se tivesse guardado o dinheiro num banco da Suíça, hoje possivelmente ainda estaria a aguardar em casa o recurso do recurso do recurso…

Dado o seu bom comportamento prisional, não demorou muito tempo até beneficiar do regime aberto. Com este estatuto, gozou de uma saída de curta duração, atribuída pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal de Execução de Penas.

Quando chegou à casa materna, os pais tinham-se divorciado, a mãe emigrara para a Alemanha, o pai para paradeiro desconhecido. Este desolado cenário familiar e o cansaço da reclusão levaram-no a não se apresentar nem no dia nem às horas estipuladas por decisão judicial. Refugiou-se em labirintos serranos e agrícolas até dar à sola para o País Basco, onde tinha familiares. Uma vez naquele País, não enveredou pelos caminhos do crime, afastou-se dos seus cúmplices e dedicou-se ao trabalho na construção civil. Na Região Basca, os portugueses eram muito estimados: além de bons trabalhadores, tinham dado umas bofetadas nos castelhanos que eles odiavam.

Passados uns anos, a saudade e um assomo de consciência fizeram-no regressar a Portugal, com a firme disposição de se apresentar no Estabelecimento Prisional, de onde tinha saído em precária, numa atitude de arrependimento. No final de poucos meses, saiu em liberdade condicional, com apresentações periódicas em Setúbal, onde passou a residir com a sua mãe.

Exprime-me saudades da Festa da Santa Luzia no Castelejo: “era a maior romaria da Beira Baixa. Nem a Senhora do Almortão lhe ganhava. Era mais religiosa, mas também comercial, os romeiros chegavam de todas as aldeias do concelho do Fundão, em carros de bois, carroças, autocarros, todos a cumprir as promessas dessa Santa que tem no prato os dois olhos. Compravam-se também as Flores da Santa Luzia, únicas no mundo. Os primeiros dois dias eram festas de romeiros, o terceiro e o quarto eram só para os naturais do Castelejo.”

Actualmente, com a mãe a fazer tratamentos na Alemanha, o nosso Homem tem um trabalho precário nas obras onde a sua frágil saúde suporta diariamente todo o género de pesos e humilhações: “não quero entrar mais na merda, quero viver honestamente. Mas preciso de um trabalho mais leve, de porteiro ou jardineiro. Tenho esperança que o Serviço Social me encaminhe para algo assim”.

Não é todos os dias que um ex-director e um ex-recluso conversam à mesa fraterna. Desejamo-nos a melhor sorte do mundo e seguimos os nossos caminhos. Anoto no caderno um aforismo da Condessa Diane: “as horas batem indiferentemente para todos e soam diferentemente para cada um.”

António Alves Fernandes

Setembro/2018

Setúbal