A TERRA DO MEU SACRISTÃO

A vida tem acontecimentos que não sabemos explicar. Os crentes dizem que tem graça divina. Os não crentes fundamentam no mero acaso. Mas o facto é que o meu Sacristão, de menino, tem-me acompanhado ao longo da vida, apesar de já ter falecido há duas décadas. E o meu olhar inocente nunca me faria acreditar que um dia, décadas mais tarde, iria à sua Aldeia Natal: Bismula (Sabugal.)  

O José Maria Fernandes era o sacristão da Igreja de Santa Maria da Graça, a atual Sé da Diocese de Setúbal e mais tarde na Igreja dos Grilos, mesmo junto à minha primeira casa, em Setúbal, na Praça do Quebedo, ou Praça General Luís Domingues. Para uma criança uma missa em latim pouco ou nada dizia e ainda para mais com o fatinho domingueiro que não se podia sujar.

Para além de apreciar a Fé da minha saudosa mãe, com um véu branco na cabeça, e de contar os minutos e segundos para que a missa acabasse, havia um momento que apreciava na oração da Eucaristia: a Consagração! Nesta parte o pequeno Sacristão tocava uma campainha, cujo som ainda hoje me recordo. O “Tio Fernandes”, Sacristão fazia-o com todo o preceito e numa sintonia perfeita com as palavras do sacerdote.

Aquele momento solene para mim era pleno de mística e hoje quando vou à missa sinto falta deste complemento, que nos ajudava a transportar o pensamento para a reflexão.

Outro aspeto que me prendeu ao Senhor Sacristão Fernandes era o ofertório. A minha mãe tinha um pequeno porta moedas de prata em forma de bolsa rendilhada. Daí saía a nossa contribuição para a igreja e para a ajuda do sustento do Sacristão. Décadas mais tarde num assalto à minha casa curiosamente o único objeto roubado que a polícia conseguiu recuperar foi precisamente esta bolsinha.

Na juventude convivi nos escuteiros com alguns dos seus filhos, sem o saber. Um deles marcou-me muito e deixou-nos prematuramente sem ter chegado a tempo de lhe dar um último abraço. O Joaquim Alves Fernandes foi uma referência importante na minha transição de criança para jovem e nunca mais o esquecerei!

Mas José Maria Fernandes continuou a acompanhar-me sempre ao longo desta minha vida. Chegado à Beira, por motivos profissionais, passei muito do meu tempo no Concelho do Sabugal e vim a conhecer a sua terra natal sem o saber: Bismula, bem como dois dos seus netos, Paulo e Mário Fernandes, igualmente sem o saber.   

Este entrelaçado de acontecimentos só começou a fazer-me sentido na cabeça quando comecei a conviver com o António Alves Fernandes, seu filho varão.

Desta amizade que tenho tido com o António acabo por descobrir que o Sacristão que tanto observava desde tenra idade parece que me acompanha com os seus filhos e netos nesta longa caminhada da vida.

Pelo que sei de José Maria Fernandes, foi um homem que sempre lutou com uma Fé invulgar tendo em conta os padrões dos nossos dias. Amante da cultura, ensinava a ler e a escrever os adultos da Bismula, até que esbarrou com a falta de um diploma, (apesar de enorme sucesso nos exames da 4ª classe,) que o fez emigrar à pressa para Setúbal, com nove filhos pequenos, tornando a cidade do Sado como a sua Terra Prometida.

Conseguiu, com o apoio da mulher, educar e preparar para a vida dez filhos, graças aos novos empregos que começaram a surgir em Setúbal, nos anos sessenta, possibilitando viver um período de grande crescimento económico com o aparecimento de novas indústrias.

O José Fernandes que percorreu o País Basco, regressando à profissão sem horários de agricultor, professor, sacristão, teve de agarrar a oportunidade de ser operário, enriquecendo-lhe a dimensão humana tornando-o ainda mais culto e sabedor dos trilhos dolorosos da vida.

Tendo hoje almoçado com o António Fernandes, na cidade do Fundão, um belíssimo bacalhau cozido, senti vontade de reviver os territórios de José Maria Fernandes, e desafiei o seu filho António a ir matar saudades dos “barrocos” bismulenses.

Às vezes o pensamento parecem palavras de «alguém» e pressenti a presença do José Fernandes que nos queria acompanhar neste passeio. E digo-o com sinceridade porque acredito que nos vai acompanhando nestas caminhadas que faço esporadicamente com o seu filho.

Embora a viagem tivesse sido rápida, graças às novas vias de comunicação, sente-se logo à entrada o desconsolo de mais uma aldeia votada ao esquecimento. Nem um gato se vê!

O desenvolvimento das vias de comunicação, o desaparecimento da fronteira, levou em sessenta anos, a escola, a agricultura, muito comercio e acima de tudo a «vida», as pessoas, tornando hoje a Bismula numa terra a esmorecer, como tantas outras, mas que outrora trazia um sorriso de crianças a brincar, suor de gente a trabalhar e o rugido do gado a pastar com abundância.

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Mas a realidade, aquilo que vimos e que nos retratou, foi o verde dos lameiros de outrora que hoje é o mato do abandono!

Mesmo assim foi refrescante lembrar os tempos de José Maria Fernandes, a sua casa, a escola, a antiga capela de Santa Barbara, uma Igreja Renascentista que foi destruída, a floresta cuidada, a agricultura prospera, as pessoas que percorriam as calçadas acima e abaixo tornando um nome de Bismula como uma terra de trabalho e de virtudes.

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Naqueles instantes em que lá estive senti o desconsolo deste interior empobrecido, pressenti o José Maria Fernandes a sussurrar-me ao ouvido: enquanto há vida há esperança!

E se calhar tem razão. Basta refletir na história da sua vida, das dificuldades que passou e do triunfo que acabou por conseguir. A luta, a determinação e os valores dão-nos resiliência para vencer as dificuldades.  

Mas não fiquei por aqui. Enquanto o António Fernandes revivia o velho pinhal onde brincava com os irmãos e descobriam ninhos e míscaros, afastei-me um pouco e respondi-lhe em pensamento: tem toda a razão, olhe que a vida dá muitas voltas!

Basta ver o que se passou com a bolsinha de prata que aparentemente é um simples objeto espoliado e que materializou a vontade de uma amizade!

A partida mesmo de uma visita breve deixa sempre saudade. Nunca sabemos quando voltaremos à terra Natal do meu Sacristão e dos seus filhos.

Por isso, pelo caminho paramos no talho e comprámos um bucho raiano.

Nada melhor qua acabar um dia destes convidando amigos e partilhar esta iguaria com outros enchidos que o Sabugal conhece.

O Tio José Maria merece!

Bismula, 6 de janeiro de 2019