ADEUS PROFESSOR MIGUEL…
Encontrava-me no Sabugal, numa manhã de nevoeiro, com o sol meio escondido, quando no telemóvel recebo uma mensagem: “faleceu o Professor Miguel António Aveiro de Sousa Santos”. O Professor Miguel foi um “Nosso Homem” muito especial, meu companheiro e confidente nos bons e maus momentos, um grande amigo como há poucos, e com quem convivi durante vários meses na Casa de Saúde de Condeixa…
A notícia deixou-me perplexo, incrédulo e dorido. Ainda há poucos dias falávamos ao telemóvel, trocávamos mensagens e correspondência via email. Não era possível acontecer tão cruel notícia. Pego no telefone, rezando para que fosse um boato, mas infelizmente acabei por confirmar o que não queria de todo. Um sentimento de revolta e uma profunda amargura invadiram-me o coração. Era impossível não chorar…
Cheguei a conhecer o seu pai, Alferes de Engenharia, quando cumprimos o serviço militar na Guiné-Bissau no Batalhão de Engenharia 447, em Brá. O mistério da vida, cheio de encontros e desencontros, deu-me o privilégio de me cruzar mais tarde com seu filho, Miguel, um jovem nascido na Pontinha (Lisboa), junto ao Batalhão de Transmissões. Aí frequentou a Escola Primária e jogou nas camadas jovens do Sport Lisboa e Benfica. Formado, foi professor no ensino secundário, em Coimbra.
Sem dúvida que esta vida dá muitas voltas e durante meses fomos trabalhando juntos para recuperarmos das nossas maleitas silenciosas, daquelas que muitas vezes pensamos que só acontecem aos outros.
Naquele espaço de recuperação, de reflexão e de solidariedade, criámos uma grande empatia e juntos procurámos um novo amanhecer para a nossa vida. Conversávamos muito, ele lia-me os seus poemas, eu lia-lhe as minhas crónicas, e ríamos e chorávamos como dois meninos.
Miguel, esta tua partida inesperada, faz-me recordar aquelas reuniões semanais, onde voluntariamente nos dávamos às diversas actividades, principalmente aos trabalhos no refeitório. Nunca fizeste parte dos “coimbrinhas”!
Recordo-te, agora com saudade, a incentivar sessões de leitura, onde foram lidos muitos textos. Lembro-me da primeira vez que li um poema da tua autoria, publicado no teu magnífico livro – “A Azenha Derrubada” -, e também quando leste um texto do meu livro “O Nosso Homem.” Esse teu livro de poemas é um hino à natureza, ao amor, aos amigos e à tua ausente esposa.
Recordo-te como um samaritano, não precisavas de ouvir o Evangelho em qualquer púlpito para o colocares em prática no dia-a-dia.
Recordo-te com a paciência de Job para me tirares dúvidas e me ajudares no manejamento do computador.
Recordo-te a defenderes as causas da Justiça e da Verdade, ajudando os doentes mais carenciados e necessitados. Estavas sempre solidário e presente!
Recordo o teu convite para eu assistir na Carapinheira, Montemor – o – Velho, ao sacramento do Crisma dos teus dois filhos.
Recordo-te, a pedido de uma Catequista, a escolher um dos teus poemas para ser lido aos adolescentes da Catequese em Aldeia de Joanes.
Recordo-te a partilhar a tua disponibilidade e os teus conhecimentos de docente com quem tinha a obrigação e a responsabilidade de saber mais devido ao cargo que ocupava.
Recordo a tua alegria quando colocavas os meus textos no site “Fã Poesia” e de me comunicares feliz que eu tinha um elevado número de leitores.
Recordo-te na Festa de S. Bento Menni, quando subiste ao palco do auditório e, perante centenas de pessoas, leste o teu poema “Em Memória do meu Amigo Carlos Freitas (O Carlão)”, que faleceu de uma doença incurável, comovendo a maior parte da assistência com a tua sensibilidade única e a tua extraordinária mensagem de amor e de solidariedade.
Recordo-te na defesa intransigente da classe dos professores, que o poder político tem esquecido, e lembro-me de dizeres que alguns comentadores e profetas da desgraça não imaginam o que é uma sala de aula nos tempos correntes.
Recordo-te com o nosso amigo Valentim, um exímio tecelão de linho, debruçados sobre um tabuleiro de xadrez, num jogo de inteligência, paciência e demorado para se saber quem irá ganhar. Aí a maior parte das vezes ganhava-te!
Obrigado, muito obrigado, por me vires visitar após a tua saída, nunca te esqueceste deste teu grande amigo e destas nossas partidas de xadrez.
Recordo-te a não pactuar com uma sociedade egoísta, injusta, oportunista, cheia de gente a olhar só para o seu umbigo.
Recordo-te com o Valentim, quando te deslocaste ao Fundão, onde almoçámos à mesa da mais pura amizade.
Recordo-te num encontro de poetas na Póvoa da Atalaia, lendo um poema de homenagem ao Eugénio de Andrade: “O SOL É SECRETO”.
Recordo o poema que carinhosamente dedicaste a mim e ao Valentim, teus companheiros.
Miguel, com todo o meu respeito, não resisto a transcrever este teu poema de despedida, antes de partires para a pátria eterna onde te espero encontrar:
TENHO DOIS JARDINS
“Tenho dois jardins de cravos, um branco e outro vermelho, um triste e outro alegre. Já foram ambos livres.
A desilusão é uma parede entre dois jardins, quem nunca viu cravos vermelhos e brancos nunca foi livre, os vermelhos vão permanecer para sempre na nossa memória, pois naquele dia foram vendidos em maior quantidade, era o que havia, e ainda bem, são mais alegres, são livres.
Por vezes, quando as flores teimam em secar grito como as crianças até me doer a voz e depois adormeço e sonho com o meu terreiro repleto de flores vermelhas.
A única coisa que me consola é o meu sonho de justiça e liberdade… o meu coração não deixa de expandir a minha alma e faz com que acredite no futuro.
As sementes não secam.”
MS
08/04/2019
Passo agora a palavra ao meu irmão escuteiro António Alçada que também privou com o Miguel:
Percorro com o António este caminho de tristeza e dor, numa Quaresma que nunca mais esqueceremos. Fica-nos aquele sorriso educado e simples de uma pessoa invulgar. Os três estávamos unidos por esta cultura que tanto amamos e, curiosamente, por maleitas no nosso pensamento.
Com muita alegria soube da recuperação do Miguel, depois foi o António, ficando os 3 mais próximos através das redes sociais e de textos maravilhosos que íamos partilhando. Curiosamente o artigo sobre a minha depressão teve uma «menção honrosa» deste Professor Poeta, não me deixando, no entanto, tranquilo em face da atenção que prestou ao mesmo.
No passado dia 8 de abril, o Miguel postou um poema que me deixou apreensivo. Senti o que não devia. Não agi como deveria. E agora fiquei com um remorso inapagável.
Aqueles 2 Jardins divididos por um sentimento onde o grito de uma criança te leva a adormecer com um sonho de que afinal as flores não secam, não morrem. Esse sonho de justiça e liberdade que tanto queres sem dúvida que te rebentou o coração e te expandiu a alma. É verdade que te foste, mas a tua palavra escrita e a tua descendência, no fundo essas sementes que referes ficarão para o futuro!
O Miguel, sabia transmitir o seu estado de alma numa rima assertiva, não nos deixando, de todo, indiferentes. Aquele grito de socorro não se fez ouvir, não se fez sentir, sendo engolido mais uma vez pelo quotidiano banal do futebol ou das famílias inseparáveis.
Acredito Miguel que um dia nos reencontraremos e voltaremos a conviver com a tua rima, o teu sorriso e a tua doce alma. Onde estejas acredito sinceramente que estejas em paz e que nos continues a seguir neste mundo sem tréguas.
Quando parte um jovem professor a escola fica mais pobre, mas um poeta nunca morre…
Miguel…até qualquer dia.
António Alves Fernandes e António José Alçada
Aldeia de Joanes
Abril/2019