ALPEDRINHA – O HOMEM DO CLARIM
Alpedrinha está numa tarde de imenso calor, uma canícula de se colocar o melhor chapéu. Só à sombra das tílias frondosas, que parecem aguardar a saída do Espírito Santo, acolhido na Capela de origem Templária, e em frente a Fonte com o mesmo nome, consegue matar a sede de quem se aproxima. Ali me refugio, onde já estão dois idosos a ver passar o tempo, tentando esquecer as agruras da vida. Um deles, utente do Lar da Santa Casa da Misericórdia de Alpedrinha, nunca teve visitas, e sempre que se pergunta como andam as tropas, responde de pronto: “ anda tudo passado “.
Nasceu há sete décadas nas Quintãs – Três Povos (Fundão). É filho único de um casal de agricultores, que trabalhava de sol a sol, sem horários; às vezes ainda ajudava os seus vizinhos, partilhando atividades.
Ainda frequentou a Escola Primária, “mas a cabeça era fraca e era necessário ajudar a família no cultivo do terreno. A terra dá tudo, mas é preciso semeá-la e tratá-la. A minha vida foi sempre o trabalho do campo. Ainda fiz uma experiência na construção civil na Covilhã, mas o cheiro da terra e das árvores falou mais alto”.
Ainda teve hipóteses de ir trabalhar para o Entroncamento, nos Caminhos-de-ferro, onde o progenitor trabalhou alguns meses, mas por falta de habilitações teve de sair e o filho não entrou pelas mesmas razões.
Iniciou o serviço militar em Castelo Branco, esteve no Regimento de Caçadores 6 e no Regimento de Cavalaria 8, duas unidades que foram extintas. Na primeira funciona o Estabelecimento Prisional e na segunda a Biblioteca Municipal, a Loja do Cidadão, os Estúdios da RTP e o Distrito de Reserva Militar.
Um sargento formador dava aulas de clarim a mais de trinta e cinco instruendos candidatos, mas só dez acabavam com êxito este curso. O nosso Homem foi um dos eleitos: “Era uma especialidade difícil, o clarim não tem teclas e o segredo está no movimento bocal.” Durante três anos, o clarim foi o instrumento musical inseparável e o seu melhor amigo. Quando olha para trás, diz que se sente orgulhoso por tocar o clarim. Todos, sem exceção, dos generais aos soldados, obedeciam aos seus toques – arvorada, formaturas, içamento e descida da Bandeira Nacional -, todos se punham em sentido. “Quando tocava finados, sentia um grande arrepio no meu corpo”.
Depois de Castelo Branco, onde aprendeu a ler e a escrever nas aulas regimentais, seguiu para Vila Nova de Gaia, para a Serra do Pilar – Quartel de Artilharia Pesada nº2. Daqui foi mobilizado para Angola, onde não necessitou de usar muito o clarim, pelo que deu uma ajuda nas escoltas de civis.
O amor ao clarim tinha de ficar perpetuado no seu corpo. No braço direito fez uma tatuagem desse instrumento, anexando a palavra ANGOLA. “Deu-me para isto, outros preferem a tatuagem da namorada, dos filhos e tantas outras coisas. Hoje as tatuagens são uma desgraça nacional, vê-se aí cada coisa, vi nos braços de um fulano a imagem de dois cornos. Será que se enganou no local? Já não respeitam o corpo, estamos no fim dos tempos”.
Apesar de exímio tocador de clarim militar, não tem qualquer louvor, bem pelo contrário, uns dias de prisão, por participar numa tentativa de levantamento de rancho e ofensas ao alferes. “ Só nos davam arroz e peixe, pareciam estilhaços provocados por uma granada defensiva. Não está preocupado, com tanta inflação de louvores e condecorações, já não tem qualquer significado e até há militares, que as querem devolver.
Nunca casou, mas não foi por falta de mulheres. Antes de ir para a tropa pensou juntar os trapinhos com uma companheira, mas a mãe opôs-se totalmente, porque “tens uma serra muito grande para subir”. Também estava preocupada, porque não queria que o seu filho, finda a comissão no Ultramar, regressasse a casa mais enfeitado que andor de Santo António, na Procissão do Souto da Casa, que não conseguisse passar na ombreira da residência.
Com a morte dos pais, foi trabalhar na agricultura para Aldeia Nova do Cabo (Fundão), onde esteve alguns anos. A morte do patrão, a doença e as dificuldades económicas e sociais, conduziram-no ao Lar de Alpedrinha.
Ao fim de cinquenta anos, já não consegue tocar o clarim como tanto desejava, resta-lhe a saudade tatuada no braço.
O nosso HOMEM do clarim a que todos obedeciam aos seus toques, o nosso “ Comandante”, chama-se António Carrola Reis.
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Julho/2015