Tantos anos passados, muitas vezes a sua recordação, e vou encontrá-lo na Quinta da Ribeira Velha (Tortosendo), na companhia da sua esposa e não muito longe das três filhas e netas e um neto. Falo do meu amigo José Martins. Apesar de reformado, ainda trabalha a terra e cuida de cabras e galinhas.
A manhã está propícia à conversa. Instalamo-nos em frente à sua casa rural, debaixo de uma latada de videiras, um tecto vegetal e fresco com cachos a medrarem. Como é hábito beirão, a esposa, de infinita generosidade, não se cansa de colocar iguarias sobre a mesa.
José Martins nasceu em 1930 no coração da Serra da Estrela, no Casal do Rei, freguesia de Vide (Seia). Diz-me que o seu nome resultou da mãe Maria José e do pai Agostinho Martins. Cruzaram o José da Mãe com o apelido Martins do Pai e resolveu-se o problema. Quando nasceu, o Pai era emigrante em Buenos Aires (Argentina), onde se encontrava uma comunidade de seus conterrâneos. Regressou a Portugal mais pobre do que partira.
O percurso laboral foi longo e com muitas etapas. Como irmão mais velho, teve que abandonar a escola para ajudar a Mãe, pois da nação do tango chegavam más notícias e de pilim nem sinal. Em criança foi aguadeiro e moço de recados nas obras da estrada de Alvoco da Serra – Vasco Esteves de Baixo, na Serra da Estrela. Um dia, num rebentamento de pedras, foi ferido numa perna (as marcas ainda hoje são bem visíveis), percalço que o atirou para um tratamento difícil. A convalescença durou um ano, entre Loriga (Seia), sob os cuidados do Médico Andrade e o Hospital da Ordem de S. Francisco em Lisboa, onde teve que fazer fisioterapia. Não voltou mais à estrada.
A vida deu uma cambalhota e assinou um contrato por dez meses para trabalhos sazonais na Quinta da Alagualva (Alpiarça). Aí ficou a conhecer a sopa de pedra.
Durante cinco anos, esteve ainda na Quinta de Santa Tereza (Alenquer), propriedade de Mário Ramos e Sara Ramos, “pessoas extraordinárias que estimavam muito os trabalhadores”. A jorna mensal era de trezentos e cinquenta escudos, acrescida de trinta quilos de farinha de milho, cinco litros de feijão e três litros de azeite.
Um dia, com saudades da família, regressou à sua terra natal e o Pai resineiro já não o deixou partir para Alenquer. Diz-me que era respeitador e humilde, aceitando as ordens do seu Pai, embora tivesse ficado prejudicado.
Veio nova etapa laboral, seguindo as pisadas do Pai como resineiro. Inicialmente trabalharam juntos para a União Resineira Portuguesa em Viseu, que lhe pagava dez tostões por cada quilo de resina. Também teve uma proposta de Arganil da Empresa Mariano Lopes Morgado e Cª., Lda., que lhe pagava mais um tostão por quilo.
Aprendeu com o progenitor as diversas fases deste trabalho de resineiro – a descasca do pinheiro, o alisar de um pequeno pedaço de tronco, a pica, o colocar os pedaços de lata para resvalar a resina para as tigelas de barro, a renova, a sangria que consistia em pequenos cortes no tronco do pinheiro, e finalmente a recolha da resina em vasilhas próprias, que esvaziavam para barricas.
Depois de uma estadia em Figueira de Castelo Rodrigo, assentou residência na Bismula (Sabugal) em 1955. É um tempo que nunca mais vai esquecer. Foi ali que em 1956 frequentou o Curso de Adultos, tendo como Professores o meu pai José Maria Fernandes e o seu filho mais velho António Alves Fernandes. Com os nossos ensinamentos, conseguiu fazer a 4ª Classe no Sabugal, com provas escritas e orais na presença de um Júri Escolar: “Obtive assim o passaporte que me abriu as fronteiras na construção de um futuro mais risonho”. Regressados do Sabugal, lembro que cada um dos aprovados lançava um foguete à entrada da povoação da Bismula.
O nosso Homem conta: “Um dia estive com uma pneumonia e graças aos cuidados e diligências de António Joaquim Videira, que me deu três injeções de penicilina, safei-me da morte. Acredite que todos os dias lhe rezo pela alma, salvou-me a vida e entusiasmou-me, contra a vontade do meu pai, a matricular-me na Escola da Bismula para Ensino de Adultos”. O nosso Homem não é de ferro e comove-se quando recorda esse amigo. E chorou…
Também se apaixonou por uma linda Bismulense. Por esse facto teve de pagar o imposto revolucionário – uns almudes de vinho-, como determinava o código para aqueles que namorassem uma menina de terra alheia, pois caso contrário não poderiam entrar ou namorar nessa aldeia. Em todo o caso não se casou com essa esbelta moça.
O nosso Homem conta: “Durante três anos as gentes da Bismula manifestaram-me sempre muita amizade, vivi numa comunidade familiar. Havia uma base de exploração resineira, que abrangia as aldeias de Badamalos, Valongo do Coa, Vale das Éguas, Ruivós e Aldeia da Dona”. Havia, note-se, uma faixa florestal importante, sobretudo o lendário Pinhal das Cambras, sobre o qual as nossas avós contavam histórias de lobisomens, assaltos de zés do telhado e lobos famintos.
Na indústria da resina, ainda caminhou por Meimoa, Penamacor, Vila Franca das Naves e Pampilhosa da Serra, até que um dia, cansado de pinhais e com a crise da resina à porta, emigrou para a Alemanha.
No país de Lutero, conseguiu reunir algumas economias e regressou ao Tortosendo. Hoje é vizinho dos “Missionários do Verbo Divino”, que chegaram a ter duzentos alunos. Recorda os amigos Zé Vaz de Aldeia da Ponte (Sabugal), Zé Jerónimo de S. Vicente da Beira, Padre Lúcio do Brasil e tantos outros. Empregou-se na Junta de Freguesia e passou para os quadros da Câmara Municipal da Covilhã, onde foi chefiado pelo actual recluso 44.
Conta mais de oitenta anos e ainda não encontrou tempo para descansar.
Ainda haverá resineiros, pastores, lavradores, agricultores, pescadores? Há, tenho a certeza de cronistas que ainda tem a liberdade de escrever de pessoas simples, trabalhadoras e honestas.
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Julho/2015
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