BLOCO DE NOTAS HOSPITALARES

 

Acordo internado numa unidade hospitalar, sem ouvido nem achado, com um fardamento novo, uma pulseira branca (não das electrónicas), número de processo clínico, nome e idade. Horas antes, nem um “amén” ouvi na Sagrada Eucaristia da isa Dominical.  

Diz-se que cada homem deve procurar fazer filhos, no meu caso três, plantar árvores, já plantei centenas, e por fim escrever um livro. Em Aldeia de Joanes, no Dia do Pai, lancei “o Nosso Homem” e segui para o Hospital. É o ciclo da vida de um simples cidadão.

Dou conta de estar numa acolhedora enfermaria. Vejo uma utente em estágio há mais trinta dias, a incómoda enfermidade não altera a sua boa disposição.

Numa sala acima, não falta material técnico: máquinas para medirem o ritmo cardíaco, rampas de oxigénio, aspiradores e muitos fios e tubos. Apesar do respeito que inspiram estas ferramentes, o ambiente é acolhedor, graças à grande dedicação e afectividade dos profissionais de saúde, que fazem das tripas coração sem as devidas contrapartidas salariais. Dizem-me que uma greve prevista para Março foi desconvocada com os argumentos do costume.

Quando penso estar longe de gente conhecida, eis que aparece um ex-aluno ao meu lado, o Antero, agora funcionário hospitalar. Abeira-se do meu leito e confessa: “Vi o seu nome na lista de doentes. Nunca o esqueço, graças a si completei o 7º ano em Castelo Branco. Ainda me lembro dos seus apontamentos sobre as crónicas de Fernão Lopes”.  

A companheira Srª Lurdes de Erada avisa-me: ”quando somos novos temos saúde de ferro, mas com a passagem para a velhice começam as mazelas e a meta aproxima-se do fim”.

No mundo das gentes arraianas, encontro dezenas de conterrâneos. Admiro a sua luta pela vida no estrangeiro, a sua sabedoria de experiênica feita e a memória das suas raízes. Logo na cama ao lado está um doente arraiano com o nome de Alves Fernandes. Rio-me com a coincidência, estarei na ala hospitalar dos Alves Fernandes? Digo-lhe que sou da Bismula, ele diz-me que temos familiares em comum na Aldeia Velha. As nossas almas rejuvenecem quando as sabemos ligadas.     

O meu amigo arraiano e parente nunca abandonou a sua Aldeia Velha: “Quero ali morrer: como as árvores, sempre de pé”. Recordamos que passámos fome, frio, os pés calçados com as chancas – tamancos de madeira… Percorremos os caminhos dos contrabandistas, às vezes fintávamos as autoridades, outras eram elas que nos enganavam no jogo do gato e do rato. “Amigo António, a quem entregámos as nossas aldeias?”

Quando fixamos demasiadas horas o tecto de um Hospital é inevitável falar do Céu: “Acho que estes profissionais de saúde vão para o Céu, bem merecem depois deste inferno”. O companheiro arraiano sorri e completa: “além das doenças, ainda aturam os nossos feitios”.  

Surge mais uma arraiana na conversa – a Enfermeira Tânia.  Sem papas na língua dá um recado: “na minha vila histórica, que já foi concelho, colocaram uma “lagartixa” em cimento para aceder ao Castelo. Não viram as pedras ali ao lado. Pegaram no chafariz da praça e colocaram-no à entrada do Povo, talvez para lavar os pés aos emigrantes… Este monumento era o símbolo máximo dos namoricos às escondidas dos nossos pais, era o local dos nossos encontros e desencontros. Agora está desterrado…” A nossa arraiana transmite-nos energia e coragem.

É minha obrigação moral afirmar que estes trabalhadores da saúde, nem sempre reconhecidos em termos monetários ou de carreiras, operam autênticos milagres. O Papa Francisco escreveu há tempos: “a dádiva fortalece a vida, o comodismo e o isolamento enfraquecem-na”.

Resta-me agradecer o muito carinho que recebi durante os dez dias de internamento na unidade de AVC no Hospital da Cova da Beira na Covilhã. Com estes Homens e Mulheres que todos os dias aliviam as dores físicas e psicológicas, a Bondade e a Solidariedade nunca adoeçarão. Um Bem-Haja a todos e votos de uma Santa Páscoa.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Abril/2017