Finalmente! Finalmente, mais de meio século depois, como filho pródigo, fui às Festas de São Marcos do Carvalhal do Côa, uma anexa de Badamalos, apesar de as suas gentes estarem sempre muito mais unidas, em termos religiosos, familiares, sentimentais, trabalho e até económicos, à Freguesia da Bismula. Daquela povoação, vinha todos os domingos, ou quando era chamado a acudir alguma maleita, o Barbeiro o “ Tio Vieira “, homem de educação esmeralda, de trato fino, competente nas formas de manobrar as tesouras e a navalha de barbear. Era um verdadeiro profissional. Ainda hoje lá está, na Rua de São Sebastião, na Bismula, o seu espaço, em termos sentimentais, a sua oficina, a sua barbearia. Também todos os domingos, o Povo do Carvalhal, com chuva ou sol, com frio ou calor, se deslocava para a Igreja da Bismula a fim de cumprir o preceito dominical, contando com o apoio solidário da Tia Luiza Fernandes, que lhe dava guarida. Nunca entendi esta “separação“ física, nunca entendi as razões da administração e divisão do território, que pariu esta situação.

Longe estão os tempos em que aquelas festividades eram pretexto para grandes rixas, uma delas até causou uma morte, que meteu paus e varapaus, havia sempre um palheiro, para os guardar, e, a pancada surgia normal entre as duas freguesias da Bismula e de Badamalos. Uns defendem que era por causa das lindas e esbeltas moças do Carvalhal, dos namoros da rapaziada das duas freguesias, outros defendem a teoria de que aquele território era Bismulense. Todos sabem a participação ativa da Bismula na festa de São Marcos, só possível a sua realização com aquele apoio. Não é por acaso que no Carvalhal há uma grande devoção pela linda e preciosa Imagem de Nossa Senhora do Rosário, que é Padroeira da Bismula. Não é por acaso que se uniram muitas famílias, no sacramento do matrimónio. Não por acaso, que alguns alunos adultos frequentaram a Escola Noturna na Bismula e fizeram exame da 4ª Classe, que lhes proporcionou um futuro melhor.

Com estas razões ou falta delas, e com a ajuda do consumo exagerado de vinho (na Bismula havia só cinco tabernas: Zé Vasco Lavajo, Joaquim Serrote, António Mendes, Luís Ramos, Maria Serrote; a filha Barbara era taberneira itinerante. Em Badamalos, nem uma taberna existia, mas tinham as suas adegas domésticas), caminhava-se muitas vezes para a cacetada.

Segundo o Padre Agostinho Crespo Leal, a Capela de São Marcos é um dos monumentos mais antigos das terras do Planalto do Ribacôa. A testar essa antiguidade estão as pinturas nas paredes da Santíssima Trindade, descobertas nas últimas reparações, que tudo indica pertencerem ao Séc. XV. Também a mesma opinião refere que esta é uma das mais antigas romarias, em que todas as pessoas da vizinhança aqui se deslocavam, com rebanhos e animais, para no princípio da Primavera serem abençoados por São Marcos, dando inúmeras voltas à Capela. Nestas convicções religiosas, o Povo Bismulense, no final da Festa de São Marcos, com o Pároco à frente, fazia uma procissão, pedindo ajuda divina, rezando as Ladainhas de Todos os Santos, mas com particular realce para o São Marcos, a fim de esconjurarem a purga da vinha e livrar a lavoura de todos os males.

Com um bairrismo invulgar os habitantes do Carvalhal e os que estão na diáspora, reúnem esforços e apoios, metem mãos à obra, e, num programa interessante e convidativo com caracter religioso e musical, concretizam todos os anos a Festa do Evangelista São Marcos. Este ano coube a dois timoneiros, os mordomos Eduardo Carreira Lopes e José Carreira Lopes e suas famílias.

O programa centralizou-se no 25 de Abril com a Eucaristia em Honra de S. Marcos, embora nas vésperas já tivesse sido realizada a Procissão das Velas, com inúmeras luzinhas a iluminar o percurso, uma grande demonstração de Fé. A Capela estava lindamente engalanada com os andores do Santo Patrono, de Nossa Senhora do Rosário e de Nossa Senhora de Fátima muito bem ornamentados com flores naturais, a fazer concorrência a muitas floristas profissionais.

O Pároco, Padre Hélder Lopes, coadjuvado com o Padre Agostinho Crespo Leal da Diocese de Évora, saudou todos os presentes e, numa linguagem simples, esclarecida e familiar, salientou que o caminho das comunidades é a união. “Se nos dividirmos, acabamos. Gostava de vos chamar a atenção para a importância destas festas. Elas fazem parte integrante da cultura e da identidade das nossas terras e das nossas gentes. Assim, como precisamos do bilhete de identidade, estas festas representam a identidade dos nossos povos.”

De seguida, colocando-se em frente à Imagem de S. Marcos, apelou para que todos os presentes olhassem para ela, com olhos de Fé. Observavam-se dois pormenores importantes: na mão direita um livro- o Evangelho-, e a mão esquerda aponta o alto, o reino de Deus. “Não quero falar no leão, que está aos seus pés, porque aí entraríamos nas lides desportivas. “

Pessoalmente, estive para fazer um pedido a S. Marcos: que libertasse o rei dos animais e deixasse sair da sua Capela, para ir dar umas dentadas ou umas morrediças a muitos “ capelas “ e dinossauros, que andam no desporto, na política, na banca e em muitos setores da vida das comunidades, fazendo o mal. Fala-se em dar umas chumbadas (já temos as do Tribunal Constitucional), mas ao preço que está o material bélico, as licenças da sua utilização, com a justiça a não chegar a todos os lados, muito lenta, as cadeias superlotadas, a melhor solução são umas dentadinhas de leão, em que a lei, nestes casos, não prevê qualquer recurso.

Aprendi com a lição dada pelo Padre Hélder, descrevendo a resenha histórica, vivências e aspetos literários do Evangelho de São Marcos, mais preocupado com a ação do que com o discurso, voltado para a narração dos acontecimentos. Dá-lhes vida e cor, é atraente ler-se.

Apelou para que todos nos debrucemos sobre a leitura e meditação do Evangelho de São Marcos, e neste Ano da Fé há que crescer, amadurecer e aprender naquele livro sagrado.

Ao som da Filarmónica da Bendada, com muita gente jovem, sinal que vai ter vida por muitos anos, decorreu a Procissão das Imagens, participada com centenas de pessoas da Bismula, Aldeia da Dona, Badamalos, Valongo, Aldeia da Dona, Ruvina, Vilar Maior e tantas outras povoações, revelando que esta romaria está na alma das gentes do Planalto do Ribacôa.

Com os agradecimentos aos mordomos, foram nomeados para o próximo ano Artur Manuel Ramos Martins e Nelson Bouças, referente a São Marcos, e Alda Maria Aguiar, mordoma de Nossa Senhora do Rosário.

A meio da tarde despedi-me de São Marcos, junto à centenária amoreira e do tronco, bens patrimoniais de uma aldeia que outras destruíram, por não respeitarem a memória do povo.

Regressei à minha infância, às minha memórias, às minhas raízes, recebendo afetos de muitos, que recordaram os meus pais, ainda não estão esquecidos, como alguns distraídos por conveniências pessoais o querem fazer crer, vi pequenas courelas cultivadas, vi rebanhos a balir, vi fatos de cabras, era assim que aprendíamos na Escola Primária, ouvi o cuco, os papa-figos e o triste e saudoso canto do rouxinol. Vi a mãe natureza.

Parabéns aos mordomos pelo trabalho realizado nas Festas de São Marcos, do Carvalhal do Côa, e que tiveram o bom senso, perdoem-me as indústrias da pirotecnia, de não gastarem dinheiro inútil em foguetório.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes – Abril/2013