D.MANUEL MARTINS – UM BISPO DIFERENTE

Acabo de receber, através das novas tecnologias, um convite do Presidente Nacional da Cáritas Portuguesa, para assistir ao lançamento de um livro das Edições Paulistas com um título sugestivo – “PREGÕES DE ESPERANÇA” – da autoria de D. Manuel Martins, Bispo Emérito de Setúbal, que terá lugar no dia 16 de Julho, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal.

O convite é acompanhado por uma nota, onde se explica a escolha desta data, celebrativa dos trinta e nove anos da criação da Diocese de Setúbal, um ano depois do 25 de Abril de 1974. D. Manuel Martins foi o seu primeiro titular, passando vinte anos no exercício da sua missionação episcopal.

O título do livro levou-me a fazer uma reflexão sobre a palavra “pregões”, a sua origem e conteúdo. Surge-nos do latim, da palavra “praeco”, que significa arauto, pregoeiro, proclamador. É, pois, muito oportuno o título do livro. O nosso Bispo nunca se cansou de anunciar e proclamar os direitos daqueles que não têm voz e combater os fenómenos de exclusão social. Nos tempos presentes, nada melhor do que proclamar a esperança na voz e na escrita, ferramentas indispensáveis do pensamento de D. Manuel Martins.

Há pessoas na Sociedade, na Igreja, nas Instituições, que nos deixam marcas e recordamos para sempre pela vida que levaram. Tive o privilégio de conhecer pessoalmente este Bispo na década de oitenta em Setúbal e não me esqueço do seu aniversário natalício.

Quando tomou posse na Igreja de Santa Maria da Graça, no Verão Quente de 1975, vindo do Norte do País, não faltaram forças políticas e sociais a contestar a sua nomeação para Bispo da Diocese de Setúbal, uma diocese de operários, trabalhadores rurais e pescadores. Muitos não se esquivaram a escrever que não precisavam de um Bispo, reaccionário e do norte. As manifestações no dia da sua posse causaram muita apreensão às centenas de pessoas amigas que o acompanharam da Diocese do Porto.

  1. Manuel Martins, na sua sabedoria, na sua humilde ação, afinal era também um filho do povo, fez do seu programa de pastor um caminho de proximidade para com as pessoas, esquecendo-se das vestes episcopais. O importante era viver e acompanhar os problemas humanos, laborais e sociais da sua Diocese. O mais importante era dar cumprimento à mensagem do Evangelho de Jesus Cristo.
  2. Manuel Martins quis, por isso mesmo, viver numa casa situada no coração da cidade setubalense, no Bairro da Fonte Nova, na Freguesia da Anunciada, espaço de muitos homens pescadores, que ganhavam o sustento nas difíceis tarefas do mar.

Percorria a pé as ruas, praças, avenidas, largos e becos da cidade, entrava nos cafés e nas velhas tabernas, observava os rostos de muitos cidadãos que escolhiam o copo de vinho para matar mágoas. Com todos dialogava, a todos ajudava com palavras e actos.

Deslocava-se de madrugada aos Centros de Saúde e inteirava-se do número crescente de pessoas nas filas, à espera de marcar uma consulta.

Muitas vezes, com a sua bicicleta e em fato de treino, ia de manhã cedo para o Parque do Bonfim, surpreendendo toda a gente com o seu gosto pelo exercício físico entre pessoas comuns.

Visitava os Bairros sociais e as Fábricas, vivia os problemas das pessoas concretas e colocava-se ao lado dos trabalhadores, mas sem deixar de ouvir os empresários, de modo a impedir o encerramento (por vezes fraudulento) das empresas.

Afirmava em todos os púlpitos que havia Fome no Distrito de Setúbal, facto que o poder político negava. Houve mesmo um político que perguntou: “Mas onde estão os pobres de Setúbal, que não os vejo?” O Bispo indicou-lhe logo todas as casas que conhecia onde não havia pão à mesa e os bairros mais problemáticos.

Preocupava-se com a vida nas Cadeias, visitava os reclusos, e questionava se a reintegração social no fim da pena era uma realidade.

Visitava os agrupamentos (e são muitos) de escuteiros da Diocese de Setúbal, enaltecendo o trabalho educativo e a formação humana do escutismo, assim como aceitando as normais irreverências desses jovens com um sentido de humor ímpar. Conta-se, aliás, que alguns jovens o convidaram para beber um dos melhores vinhos da região, e às escondidas corromperam a bebida com ingredientes que não lembram ao diabo, tornando-a uma mistela insuportável. Perante os sorrisos nervosos dos jovens, o Bispo bebeu o “vinho”, agradeceu e disse aos jovens: “Que vinho tão bom! Mas estão convidados para beberem um ainda melhor na minha casa na próxima semana”. Como convite de Bispo não se recusa, lá foram os miúdos. Aí, o Bispo misturou toda a “porcaria” no vinho e deu-lhes a beber na máxima solenidade, como se estivessem a beber o néctar dos deuses. Os jovens tiveram que tragar a mistela até ficarem roxos. O Bispo disse-lhes: “Ai os meninos, para a próxima bebem água”.       

Chegou a visitar algumas vezes o meu saudoso Pai, um simples operário de Setúbal, quando já estava acamado. Quando bateu pela primeira vez à porta da residência no Bairro da Azeda, a minha Mãe nem queria acreditar. Além de partilhar uns tempos com o meu Pai, não se livrou de saborear com os meus familiares uns carapaus acabados de fritar. Por momentos, a alegria da vida venceu a dor do meu Pai.  

Em suma, o nosso Bispo entrou numa Igreja Diocesana estilhaçada por problemas políticos, sociais e laborais. Teve o grande mérito de unir as partes e colocar a Igreja ao serviço do Homem da Rua. Ao fim de pouco tempo, aquele que entrara em Setúbal como “Bispo reaccionário”, era agora uma das vozes mais inconformadas e inconvenientes para os poderosos, o que lhe valeu o epíteto de “Bispo Vermelho”. Hoje e sempre tem Setúbal no coração, mas os setubalenses também o têm na memória e a gratidão está expressa em diversos monumentos, manifestações de apreço e até no nome de uma Escola Secundária.

Foi uma bênção a Diocese de Setúbal ter beneficiado, durante vinte anos, da humanidade do Bispo D. Manuel Martins. Que a sua voz nunca se cale e seja um permanente pregão de esperança.

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Julho/2014