1. Celebramos o III Domingo da Quaresma e também o Dia Nacional da Caritas.
Entramos, com este domingo, no coração da Quaresma, tempo especialmente favorável à nossa conversão, sobretudo pelo aprofundamento do encontro com a Pessoa de Jesus Cristo, através da Sua Palavra.
Neste esforço de conversão, é-nos pedido que repensemos os nossos compromissos de baptizados e discípulos de Cristo para podermos, com verdade, renovar as promessas baptismais na Noite Pascal. Neste dia nacional da Caritas, queremos lembrar a cada um de nós, às nossas comunidades cristãs e mesmo a toda a sociedade o dever de sermos solidários, levando a sério o princípio indiscutível do destino universal dos bens, criados para todos. Para confirmar esta certeza e estimular as boas práticas, o ofertório deste domingo em todas as celebrações dominicais destina-se a auxiliar os mais necessitados, através da Caritas.
2. A Palavra de Deus hoje propõe-nos, no Evangelho, o relato do encontro de Jesus com a Samaritana, junto ao Poço de Jacob, em Sicar. Jesus toma a iniciativa de lhe pedir água para beber, no que estava a transgredir uma regra social, ao passar pelo território da Samaria, a caminho de Jerusalém. A mulher não esconde a sua surpresa, mas abre o coração à nova realidade que Jesus lhe propõe – essa água viva que mata a sede de uma vez para sempre. O diálogo prolonga-se e esta mulher confirma a sua convicção de que está a dialogar com o Salvador e acredita nele. Não consegue guardar para si esta boa notícia e vai comunicá-la à cidade. Os discípulos de Jesus, que tinham ido à cidade comprar alimentos, não entendem que Jesus tenha estabelecido diálogo com esta estrangeira e ficam ainda mais surpreendidos, quando, ao insistirem com Ele para comer, recebem a resposta: “O meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que me enviou”. Os discípulos não entenderam, mas se estivessem atentos ao que dizia a Palavra de Deus no texto do Livro do Êxodo que lemos hoje na primeira leitura, podiam perceber melhor o gesto e a atitude de Jesus. De facto, Ele estava simbolicamente anunciado naquele rochedo de onde passou a brotou água para matar a sede a todo o Povo, por força de Deus, através da vara de Moisés.
Jesus é realmente essa água viva que mata a sede de uma vez para sempre. Ele é a iniciativa de Deus que, com rosto humano, entrou na história e entregou a Sua vida por nós, quando ainda éramos pecadores, como lembra hoje S. Paulo aos Romanos, para, assim, nos recuperar para a condição de filhos de Deus e membros da sua família.
3. Toda a Humanidade está vocacionada para ser uma única família. Uma família onde há pessoas diferentes, grupos diferentes, culturas e tradições diferentes, mas que precisa da unidade própria de uma Família. Como Igreja e nas nossas comunidades cristãs estamos empenhados em viver esta vocação a constituirmos a única família dos Filhos de Deus. O caminho é Jesus Cristo, fonte de água viva como nos lembra o Evangelho de hoje. A Palavra de Deus que lemos, proclamamos, meditamos e partilhamos é a grande escola que nos há-de ajudar a progredir no cumprimento desta vocação.
As famílias e os grupos mais alargados que têm encontro regular com a Palavra de Deus são os espaços onde se realiza a escola dos discípulos de Jesus. Queremos fazer a experiência feliz do encontro com o Senhor Ressuscitado, que de facto renova a nossa vida pessoal e comunitária e também a vida da Sociedade que é a nossa.
4. E na renovação da Sociedade, que constitui a nossa grande responsabilidade, sobretudo na hora actual, há prioridades que não podemos esquecer. Uma delas é criar condições às famílias para elas cumprirem a nobre missão que lhes está confiada e que consiste principalmente na defesa e promoção da vida e também na educação dos seus Filhos. Precisamos de cidadãos bem formados para virmos a ter a sociedade renovada e bem organizada que não temos. Não podemos marginalizar as famílias do processo da educação, como infelizmente tem estado a acontecer.
Não podemos continuar com a clamorosa falta de condições sociais para a vida das nossas famílias, que de facto estão a ser impedidas de cumprir a sua principal responsabilidade que é oferecer à Sociedade os cidadãos bem formados que ela precisa. Os baixos índices de natalidade que nos envergonham, mesmo dentro desta Europa envelhecida, que começa a dar alguns sinais de querer acordar, não podem deixar-nos dormir tranquilos.
As famílias não são em primeiro lugar unidades de produção e consumo material. São sim, primeiro de tudo, santuários de amor e de vida, onde, no diálogo fraterno e entre gerações, se lançam as bases de uma sociedade renovada. Se se impõem às nossas famílias formas de vida em que o emprego ou a actividade da produção material ocupam todas as suas energias, ficando sem tempo e disposições para os pais darem aos filhos, os filhos terem tempo e espaço para o diálogo com os pais; os irmãos sentirem os efeitos positivos de partilha e mesmo correcção fraterna entre si e os avós poderem conviver com os netos, estamos a empobrecer, e de que maneira, a nossa sociedade. Estamos, de facto, a não promover e mesmo a desperdiçar o capital mais importante que é o capital humano. E é pior ainda, quando os sistemas educativos “roubam” de facto, os filhos aos pais para não só decidirem, nas costas deles, os seus projectos educativos ou a ausência deles, mas ainda por cima lhes transmitirem a mensagem de que esta é a melhor ajuda para as famílias. Convém não esquecermos que pretender educar as novas gerações fora das suas famílias é experiência desastrosa já comprovada em larga escala em outros ambientes e países e temos obrigação de abrir os olhos para não repetirmos os mesmos erros.
Na hora em que está aberto o processo para repensar a sociedade portuguesa, é bom não esquecer, mas colocar na primeira linha das nossas preocupações a necessidade de reformar as nossas leis e políticas de família e também de rever a relação das famílias com as escolas, na formação supletiva que a estas assiste.
Convém pensar seriamente em devolver à sociedade civil e em particular às famílias o direito fundamental que lhes assiste de serem os protagonistas dos projectos educativos que devem ser propostos aos seus filhos. E nunca é demais lembrar que o Estado é a pessoa menos indicada para fazer projectos educativos. De facto nunca poderá elaborar projectos educativos de excelência, pois é neutro e laico e os valores, começar pelos mais nobres, não podem faltar nesses projectos.
Tenhamos por isso a coragem de devolver a responsabilidade de organizar os projectos educativos das Escolas a quem de direito ou seja à sociedade civil e em particular às famílias. Não tenhamos medo de aceitar, sem pressão de ideologias, o que é óbvio: a saber, as sociedades têm de organizar-se não de cima para baixo, mas de baixo para cima e de dentro para fora.
Como Igreja e como comunidades cristãs, queremos dar o nosso contributo. E damo-lo, de facto, no exercício da nossa responsabilidade e na medida em que Jesus Cristo e os valores da Boa Nova do seu Evangelho passem a fazer parte da nossa vida pessoal e comunitária. Procuraremos, assim também iluminar as diversas situações humanas em que nos enquadramos. Por isso e para a próxima vamos reflectir sobre a Pessoa de Cristo Vivo, luz que ilumina todas as escuridões.
+Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda