LEMBRAR O DR. CAMACHO VIEIRA

Augusto Camacho Vieira faleceu aos 93 anos. Foi um excepcional médico-ortopedista, tocador e cantor do Fado de Coimbra, um ser humano de uma enorme humildade e solidariedade. Nele há sempre motivos para celebrar a Vida e nunca a morte.

Era um exemplo de médico no Belenenses e na Selecção Nacional. Na Equipa do Restelo, trabalhou gratuitamente durante 37 anos. O Presidente Mário Freire, natural do Souto da Casa (Fundão), quis dar-lhe um ordenado. Recusou-o, afirmando que com ele o Belenenses não contabilizaria despesas.

A Federação não abonava em dinheiros como hoje, mas tinha uma equipa de cirurgiões. Durante 52 anos operou grandes craques da bola, tais como Chalana, Rui Águas, Bento ou Pietra. No Mundial do México, naquela anarquia instalada na Equipa das Quinas, teve que dar uma bofetada a Jaime Pacheco (a horas tardias, o jogador invadiu o seu quarto, através da janela). Com Saltilho a arder, Camacho Vieira tocava e cantava as Baladas de Coimbra. Em 2015 ainda acompanhou como médico a Equipa Feminina de Voleibol do Belenenses.

Nasceu em Godinhela, limítrofe de Miranda do Corvo. Fez os Exames Secundários na Academia Figueirense, e em 1945 foi frequentar a Universidade de Medicina de Coimbra, residindo na República “O Palácio da Loucura”.

Com a licenciatura de médico, iniciou a actividade na Parede – Sanatório Dr. José de Almeida. Ao fim de seis anos, concorreu para 40 vagas, juntamente com seiscentos candidatos. Com excelente nota, foi admitido no Hospital de S. José, em Lisboa.

Em 1970 tirou a especialidade de Ortopedista e Traumatologia. Com total devoção, chegou a fazer vinte e quatro horas seguidas nas Urgências. Dizia com o muito humor que lhe era característico: “sepultei-me nos Hospitais”. Aos 80 anos ainda operava numa clínica na Rua Castilho em Lisboa.

Como o conheci? Tive um grave acidente juntamente com a minha esposa na EN18, quando regressava da Cadeia de Apoio da Covilhã, na Lardosa (Castelo Branco), o que me causou ferimentos nos dois joelhos, no tórax e na testa. Alguém me aconselhou o Dr. Camacho Vieira, médico ortopedista na Prisão-Hospital de Caxias. Ali tinha resolvido muitos problemas ortopédicos aos reclusos do país. Telefonei-lhe, atendeu-me com enorme simpatia, desprendido do vil metal, e disse-me: ”amanhã aqui no Hospital de Caxias, às 16H00.” Ordem cumprida e lá me esperava. Contei-lhe o que se passava, observou-me com as suas mágicas mãos e disse-me: ”só não consigo resolver as cicatrizes do joelho, vão contigo para a sepultura.” E elas cá estão, para durar… até morrer. Despediu-se de mim com um abraço e perguntou-me: “sabes tocar e cantar o Fado?” Disse-lhe que na música era um zero à esquerda, que o meu Fado era o Estabelecimento Prisional, mas que já organizara um premiado conjunto musical de etnia cigana.

O meu amigo Miguel Santos, jovem jogador do Odivelas Futebol Clube, teve uma ruptura dos ligamentos na articulação do joelho. Percorreu os consultórios “top” da capital, sem resultados práticos. Um dia recorreu ao Dr. Camacho Vieira. Este lançou-lhe uma toalha para as mãos para limpar o suor, e com mão mágicas rodou-lhe o pé em todas as direções, enquanto o Miguel mordia a toalha para aliviar as dores. Ao fim de umas semanas já estava apto a jogar futebol. No Campeonato Nacional de Juvenis, integrado na Equipa do Odivelas, ganhou ao Sporting por 2-1.

Que no Altíssimo seja acolhido como merece quem tantas dores aliviou.  

António Alves Fernandes

Aldeia de Joanes

Março/2018