Missa da noite de Natal
Homilia de d. Manuel Felício
Cantemos com alegria, nesta noite santa, ao Menino de Belém. Ele é o grande presente de Natal que Deus oferece a toda a Humanidade. A alegria do Natal entra de novo na nossa vida, nas nossas casas e com especial emoção nesta noite que a tradição consagra como noite feliz.
Festejamos o nascimento do nosso salvador e do salvador do mundo, Jesus Cristo, Filho único de Deus. Nasceu no seio de uma família constituída diante de Deus por Maria e por José. Foi acompanhado por um pai e por uma mãe, como pede qualquer criança para poder crescer com equilíbrio. Nasceu pequenino e frágil, como é próprio de todos os meninos.
Nasceu pobre entre os pobres, fora da cidade por não haver para ele lugar nas casas ou nas hospedarias.Quem primeiro o descobriu foram também os pobres, representados por aqueles pastores que pernoitavam igualmente fora da cidade, junto dos seus rebanhos. E descobriram-no porque souberam escutar o anjo e ser sensíveis à sua mensagem. Este dera-lhes um sinal para identificarem o salvador, que em si mesmo e de acordo com as mentalidades dominantes não era sinal nenhum – encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoira. O sinal está precisamente em marcar a diferença relativamente ao pensar comum, segundo o qual Deus é grande e a sua grandeza é medido pela dos grandes deste mundo.
A grandeza e a força de Deus, senhor do mundo, pelo contrário, está em recusar os meios de força habitualmente usados pelos homens e grupos humanos 2. Ele vem para nos salvar. E salvar significa antes de mais curar as feridas que existem em todos nós, como existem nas nossas famílias e na própria sociedade. Ele é a luz que brilha no mundo que andava em trevas, diz Isaías, e nós queremos ser daqueles que aceitam a luz para desfazer as trevas na sua vida e na vida do mundo. Ele é o médico divino que vem para curar as nossas feridas e as muitas feridas do mundo em que nos encontramos.
Por sua vez a Igreja que nós somos desde o baptismo e procuramos identificar cada vez mais com o propósito de Cristo seu fundador é uma Igreja que quer interpretar da melhor maneira este mesmo ministério da cura, indo ao encontro de todos os homens e mulheres que sofrem. É nesta linha que queremos aceitar o desafio do Papa Francisco, quando na sua recente exortação apostólica nos diz o seguinte: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas [ao encontro dos que sofrem] a uma Igreja enferma por se fechar sobre si mesma procurando a comodidade de viver agarrada às suas próprias seguranças”. Nesta mesma linha de interpelação, em recente entrevista para a grande informação, o Papa diz que a Igreja deve ser como um hospital de campanha sempre voltada para os que ficam feridos no campo de batalha. 3. É obrigação de todos os membros da Igreja intervir activamente para que este serviço da cura seja bem prestado.
Mas o Papa Francisco lança um particular apelo aos que, dentro dela, optaram por uma vida de especial consagração, a começar pelos sacerdotes. São os que assumiram a decisão e o compromisso de entregarem toda a sua vida, sem quaisquer reservas, ao serviço da mesma Igreja. Assim, concretamente aos sacerdotes, o Papa pede-nos autenticidade cada vez maior no exercício do ministério que nos está confiado. Pede-nos sinais claros de que queremos fazer, de verdade, opção pelos mais pobres.
Pede-nos gestos proféticos na relação com os bens materiais e vai ao ponto de nos dizer que bens de consumo como automóveis de top de gama ou máquinas sofisticadas como smartphones não podem preocupar os ministros do Evangelho. Isto porque toda a nossa atenção tem de estar concentrada em interpretar da melhor maneira possível, o rosto bondoso e misericordioso de Deus para com todos especialmente os que mais precisam. E particularmente em horas de crise como aquela que a sociedade está a atravessar, em que há muitas pessoas a sofrer por falta do essencial sentimos a urgência de renovar a nossa fidelidade ao que o Evangelho nos pede.
A transparência dos grandes valores que orientam a nossa vida de padres na Igreja e no mundo pede-nos renovado empenho em assumir os gestos proféticos sugeridos pelo Evangelho e vividos ao longo da história pela cadeia ininterrupta dos santos e dos mártires que nos precederam na vivência da Fé. Só eles convencem. Não podemos esquecer que o mundo actual se sente no direito de exigir da Igreja e particularmente dos que nela vivem a especial consagração coerência com os princípios evangélicos que regulam as suas vidas. Também aqui o exemplo do papa Francisco nos interpela.
Assim, a recusa formal de um certo estatuto de príncipe que tradicionalmente tem andado ligado á figura do sucessor de Pedro na cátedra romana, a coragem com que desclassifica o hábito instalado de oferecer aos padres que de alguma maneira se distinguem títulos honoríficos, como de monsenhor e outros são para nós importante lição a aprender. Isto porque só uma razão pode estar na base das nossas opções e dos nossos comportamentos – servir à maneira de Jesus Cristo para bem de todos.
E continua o papa a lembrar-nos que o serviço da autoridade que nos está confiado pede muita proximidade às pessoas, muita compreensão da realidade que elas são e das dificuldades que as afligem. É nossa obrigação oferecer-lhes acolhimento e muito acompanhamento, o que igualmente levou o Papa lembrar-nos que o confessionário há-de ser sempre distribuição da bondade e da misericórdia de Deus e nunca um qualquer “câmara de tortura”. São palavras dele. É nossa responsabilidade prioritária conhecer e acompanhar cada vez em maior proximidade as pessoas que nos estão pastoralmente confiadas. 4.
O Presépio, enquanto a expressão mais eloquente da proximidade de Deus, também nos lembra que para acompanharmos os outros precisamos de nos deixar acompanhar e de sermos realmente acompanhados. E este acompanhamento é em primeiro lugar aquele que o próprio Jesus Cristo nos quer fazer. Para isso, espera da nossa parte abertura para uma relação intensa com Ele na oração. Também aqui a experiência do papa Francisco é para nós modelar, quando faz a seguinte afirmação sobre a sua oração diária diante do sacrário, que encheu tabloides da imprensa – “Eu consigo sentir que Deus está a olhar para mim”. Mas também não receia confessar com simplicidade que mesmo no cansaço a relação com Deus não se interrompe, quando diz espontaneamente – “É bom deixarmo-nos dormir na presença do Senhor”. Este acompanhamento de que nós sacerdotes precisamos para podermos acompanhar outros passa também pela confissão frequente e pelo conforto e mesmo a correcção de quem regularmente nos escuta na direcção espiritual.É este o nosso estatuto; o estatuto de quem decidiu colocar a sua vida inteiramente nas mãos de Deus e ficar à sua inteira disposição. 5.
De facto, a Igreja e os seus ministros para cumprirem estas e outras intuições do papa Francisco, que também são palavra de Deus para nós aqui e agora, nomeadamente quando nos convoca para sermos hospital de campanha no terreno aos serviço dos muitos que estão feridos pelas agruras da vida, precisam também de se deixar curar pelo médico divino, precisam de experimentar o conforto da sua presença e do alimento que ele é nesta caminhada da vida sempre cheia de surpresas e de muitas dificuldades. Sabemos que a nossa missão é ir, sair estradas fora, ao encontro das gentes que precisam, sobretudo os mais débeis e os mais pobres. Mas para cumprirmos esta missão precisamos nós próprios de forte saúde evangélica e de a cuidar através dos meios que o mesmo Senhor coloca à nossa disposição, a começar pelos sacramentos, mas também pelo apoio confiante que devemos uns aos outros em nome de Cristo. 6.
O Menino de Belém continua a ser o Conselheiro admirável, o príncipe da paz, aquele que deseja percorrer connosco os caminhos que nos levam para fora das trevas e ao encontro da luz que ele mesmo é. Ele veio para para quebrar todas as espécies de jugos que nos oprimem e oprimem a humanidade. Ele vem para nos salvar e nos oferecer um reino eterno de justiça e de paz para sempre, na expressão do profeta Isaias. No presépio de Belém manifestou-se de verdade a graça de Deus, como hoje nos lembra a carta a Tito.
E na força desta graça que nos vem do alto, diante do presépio queremos recusar, como nos diz S. Paulo, os desejos mundanos e voltar toda a nossa atenção para o senhor que vem e para a Humanidade nova que ele inaugura. Neste Natal vamos renovar o propósito de nos pormos a caminho para ser cada vez mais esse povo purificado e zeloso das boas obras que ele veio preparar com a sua morte e ressurreição. Deixemo-nos tocar, nesta noite santa de Natal, pelos apelos que nos faz o Menino de Belém, a nós, às nossas famílias, à Igreja e à socie-dade. Santo Natal para todos.
Guarda, 23 de Dezembro de 2013
+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda