O BOM REBELDE
“Da Bismula só recordo um palheiro e um sardão verde”, diz o nosso Homem, nascido nessa freguesia de pobreza a 8 de Dezembro de 1958, agora ao volante do seu automóvel a caminho de Setúbal. Eis-me à boleia em mais uma viagem da Vida.
O nosso Homem mal contava 3 anos quando chegou à cidade do Sado em 1962. Ao fim de uma semana, perdeu-se da Mãe quando ia comprar um “Pão de Deus” numa Travessa que dava para o Largo da Misericórdia. Encontrado por uma Senhora, o nosso menino só lhe disse: “tenho fome”. A Alma Caridosa levou-o logo ao café “Moderno”, onde lhe foi servido um galão e uma torrada. Quando a Mãe o encontrou, muito aflita, não faltaram vitupérios. Só a Senhora o defendeu. O nosso Homem não esquece as primeiras palavras que ouviu na Praça do Bocage:
– Não bata no miúdo.
Entrou na Escola Primária do Bairro Salgado, do lado sul estavam os rapazes, do lado norte as raparigas. Já reguila, um dia deixou o Sul e juntou-se a 23 mancebos para invadir o recreio das raparigas a Norte. Como castigo, foi forçado a andar com um lencinho na cabeça.
Concluída a 4ª classe, foi para a Mercearia do Noé. Ganhava 160 escudos por mês (valiam-lhe as generosas gorjetas) para distribuir as encomendas e atender ao balcão. Granjeou fama de benemérito: para não se ralar colocava peso a mais de fiambre e banha sem cobrar. Não havia velhota que não quisesse ser atendida por ele:
– O gaiato avia a gente.
O nosso Homem recebeu guia de marcha e deixou a Mercearia com alguns trocos no bolso para gozar férias. Com o seu irmão Ezequiel, foi para a Colónia Balnear “Século”, na zona do Estoril. Ao invés das esperadas tréguas no trabalho, encontrou uma espécie de Campo de Concentração para crianças. Havia horas para beber água (quem bebia fora de horas levava porrada do monitor), pouca roupa na cama quando as noites arrefeciam, uma hora à espera da refeição… Todos os dias havia tentativas de fuga. Para ir à praia tinham que atravessar um túnel debaixo da linha do comboio e aguardar a sua vez para tomar banho, pois só eram permitidos 20 fatos-de-banho para 600 miúdos: “um chegava do mar e despia o fato para dar a outro”. A mãe oferecera-lhe uns calções creme e uma linda camisa de mangas amarela e azul, mas esta indumentária catita depressa desapareceu. Os miúdos ansiavam o fim das “férias”, brincando com bilhetes de comboio. Só na véspera da partida, com a visita de um membro do Governo, chegaram os palhaços e as crianças se divertiram.
Chegou o Ciclo Preparatório, queriam que o nosso menino entrasse na Mocidade Portuguesa, mas os pais mal tinham dinheiro para alimentar a família, quanto mais para comprar uma farda.
Como “não havia dinheiro para mandar cantar um cego”, o nosso adolescente formou uma quadrilha com os seus amigos “Maneta”, “Prego” e “Sardinha”. Um dos golpes consistia em assaltar o supermercado na Av. 5 de Outubro em Setúbal. Furtavam pastilhas e rebuçados que depois vendiam aos miúdos na rua para comprar tabaco.
O pai, cansado da indisciplina do filho, resolveu mandá-lo para o seminário de Gouveia em 1971. Mas o Evangelho não era para o nosso jovem. Introduziu o prazer do tabaco na Escola Apostólica do Cristo Rei (alguns miúdos começaram a fumar), escapava-se para ver a bola com o dinheiro que os irmãos lhe enviavam, baldava-se à liturgia para jogar futebol (era um grande jogador de pé esquerdo fenomenal, mais tarde chegou a companheiro de equipa de José Mourinho em futsal) e perseguia as raparigas nas procissões.
Em 1972, farto de acordar às 6 da manhã, fingiu-se doente. O Prefeito bateu as palmas, todos se levantaram menos o “Setúbal”:
– Dói-me a cabeça e o corpo todo.
A Enfermeira-Freira meteu-lhe o termómetro e saiu. O nosso jovem friccionou-o de tal forma que chegou aos 38 graus, uma temperatura que considerou aceitável para um doente. Tinha mesmo que ficar de cama. Para não ficar sozinho, resolveu partilhar o segredo com alguns colegas.
Três dias depois, o Xavier da Póvoa da Atalaia e o Domingos da Atalaia do Campo também estavam doentes. Uma semana passada, 6 dos 12 alunos da camarata apresentavam queixas. Havia perigo de virose no Seminário…
Isolados dos outros, começaram a arranjar forma de passar o tempo o melhor possível. Com um moço da Loriga, o nosso jovem resolveu organizar um festival da canção de escárnio e maldizer. Armou-se em Bocage e escreveu os únicos versos da sua vida:
“Minha Tia Aurora,
Já estou fora.
Coentro,
Cu para dentro.
Esporra,
Cu para forra.”
Todos os jovens cantaram e riram que nem perdidos.
Um dia apareceu o Padre José Cristino, já desconfiado da fraude:
– Como os meninos estão doentes, não podem ir de férias.
No dia seguinte estavam todos recuperados.
Regressados das férias, numa aula de Inglês, o “Loriga” foi chamado pelo Padre Cristino. Haviam encontrado uma folha debaixo do seu colchão com os versos do “Setúbal”. Depressa se descobriu o “poeta”, que foi prontamente convocado pela Autoridade:
– Vou falar com o teu Pai, a tua vocação é outra.
O nosso jovem tinha os dias contados no Seminário, mas ainda teve tempo para espantar a professora de matemática com 7 grilos lançados na sala de aula (cri-cri-cri-cri-cri-cri-cri), apalpar as mulheres em retiro num Convento e integrar a equipa do Desportivo de Gouveia como iniciado (foi federado durante pouco tempo devido à expulsão). Sempre que se portava mal, era condenado a lavar a loiça durante uma semana, enquanto os colegas iam jogar futebol ou voleibol. Cumpriu um dia de pena e atirou com o avental para o chão: “se cumprisse os castigos, ainda hoje estaria a lavar a loiça do Seminário.”
Seguiu para a Escola das Laranjeiras em Setúbal, onde esteve um ano até ingressar na Escola da Bela Vista. Dá-se o 25 de Abril na “cidade vermelha” e o nosso Homem integra as Brigadas Revolucionárias, colando cartazes e distribuindo panfletos do Partido Revolucionário do Proletariado.
Em 1975, numa brincadeira de Carnaval no Largo da Misericórdia, um moço furtou um boné a um polícia. Este não gostou da piada e correu o moço ao pontapé e à chapada. O povo apercebeu-se e revoltou-se imediatamente contra a polícia, que teve que se esconder no quartel da Guarda Fiscal (actual Biblioteca de Setúbal). Os mais radicais, entre eles o nosso Homem, atiraram “cocktails molotov” lá para dentro e incendiaram um jipe da Guarda Fiscal. A polícia, cercada por duas mil pessoas, viu-se forçada a chamar um Destacamento da Tropa de Vendas Novas. Os soldados chegaram aos tiros para o ar e a perseguir os insurrectos. O nosso Homem usou as pernas de futebolista para correr a grande velocidade e só parar no Jardim da Beira Mar, onde se refugiou toda a noite.
Acalmados os ânimos, surgiu novo incêndio político quando Sá-Carneiro do PPD aterrou de helicóptero na praça de touros. Foi chamada a polícia de choque e o nosso Homem teve que se esconder no Jardim do Bonfim.
Viviam-se tempos escaldantes. Um professor na Bela Vista com apenas 18 anos deixava os alunos fumarem na sala de aula. Como faltavam docentes, toda a gente passava de ano. O nosso Homem deixou de frequentar as aulas, só aparecia na escola para ir à RGA da Associação de Estudantes. Sempre que havia um exame, lá ia com os amigos “Canas” e “Alegria” da nova quadrilha assaltar a cantina, rebentar com tubos de água na casa de banho das Senhoras, saquear o bar, entre outras acções terroristas de boicote.
Após décadas de ditadura, a fome de viver e experimentar era muita. O nosso Homem recorda a pandilha que assaltava o Centro de Saúde da Praça do Brasil para roubar blocos de receitas médicas. Era prática comum a malta medicar-se com “Preludir” (a cocaína dos pobres). Alguém falsificava a assinatura do médico e os outros iam à farmácia aviar a receita. Cada frasquinho de 20 comprimidos custava 3 escudos e 70 centavos. As drogas eram, na verdade, o alimento de boa parte da população de Setúbal em meados dos anos 70 do século passado. Uma substância conhecida como o “Boi Vermelho” era muito popular: “com o boi um gajo entrava dentro de uma garrafa de trinaranjus, bebia um café de penalty sem queimar, aguentava mais na cama e tinha umas “trips” de 5 ou 6 horas”.
A seguir ao 25 de Abril, o nosso Homem integrou outra quadrilha, desta vez o objectivo era o Centro Comercial de Tróia. Aí furtou discos do Bob Dylan, canas de pesca e o “ABC do Marxismo”. O esquema era refinado. Dividiam-se em dois grupos. O primeiro grupo atacava os chocolates para chamar a atenção do segurança enquanto o segundo avançava para produtos de maior valor. Quando o segundo grupo já tinha concluído a rapina, o primeiro abandonava os chocolates na secção dos congelados. Eis que aparecia o segurança que seguira as movimentações do primeiro grupo:
– Alto aí, eu vi que roubaram chocolates.
– Então pá? Tenha lá calma. Roubámos o quê?
– Não se armem em espertos. Já vos passo as mãos pelo pêlo.
– Que é isso, pá? Quer meter a mão no meu coiso?
O segurança nunca encontrava nada. Lá fora, os do segundo grupo já exibiam as canas de pesca.
Nesses loucos anos, não faltaram namoradas ao nosso Homem. Perdeu a “inocência” aos 15 anos com uma mulher casada que trabalhava num botequim de bébés. Seguiu-se a Xana, uma amiga angolana da sua irmã Fátima, que morava na Azeda. O padrasto tinha por hábito violá-la sexualmente e suicidou-se com a vergonha. Lembra também a Charlotte, um empolgante amor de Verão que não chegou ao Inverno.
O nosso Homem empregou-se numa padaria, onde trabalhou à noite durante 4 meses. O pai, vendo o filho novamente à deriva, falou com o irmão mais velho, a residir em Aldeia de Joanes, no sentido de passar uma temporada na Cova da Beira, longe das “más companhias”, e ajudar a construir uma vivenda na Quinta da Nave de Cima. Foi, assim, que iniciou nova actividade, desta feita como servente de pedreiro. Como não há trabalho sem um pequeno vício, conheceu os prazeres do vinho beirão, tendo como compinchas o Zé Eduardo (que afirmava só beber quando trabalhava) e o Sr. Grilo. Recorda que foi sempre muito bem tratado pela Senhora Maria dos Santos Marques: “Era a minha Mãe em Aldeia de Joanes”.
Passados 7 meses, surgiu a oportunidade de ingressar na Portucel. Como na fábrica de Setúbal só entravam filhos de comunistas ou socialistas, só por acção do Director da Fábrica em Vila Velha de Ródão conseguiu o canudo.
Em 1977, na Portucel de Setúbal, fez o primeiro contrato de 6 meses para trabalhar na “máquina de canelar” (fazia, por exemplo, o cartão para as caixas de fruta). Após uma greve de todos os trabalhadores que serviam o poderoso empreiteiro “Xico Zé”, passou a efectivo e a partir daí a sua ascensão foi notável, passando pela “lavagem e branqueamento”, pelo estatuto de operador de 2ª, operador principal, operador qualificado, operador extra, Delegado e Dirigente Sindical… Reformou-se em 2015 aos 57 anos com 43 anos de descontos.
Como alguns operários gostavam de beber o seu copinho e fumar as suas “coisinhas”, foi inventado um esquema para fintar os controlos de consumo de substâncias ilícitas. No dia da recolha de urina para análise, o pessoal trazia de casa um frasquinho com urina de cão misturada com água a ferver, muito bem aquartelado nas partes íntimas. Quando iam à casa de banho despejar a bexiga, fazia-se a “transfusão do mijo”. Assim andavam sempre “limpos”.
Em Março de 1979, inspirado no “brio militar” de tropa macaca dos irmãos, resolveu oferecer-se como voluntário para as tropas especiais. Pouco tempo depois estava em Tancos na Escola de Tropas Pára-quedistas e mais tarde em Monsanto na Base Operacional de Tropas Pára-quedistas. Já no final do Curso, um Tenente passou a ter o hábito de apedrejar os Homens enquanto rastejavam nos treinos. A malta revoltou-se, ameaçando sair de cena e recusando pôr as bóinas. A situação só acalmou com um pedido de desculpas do Tenente.
À noite, enquanto os camaradas iam para os bares, o nosso Homem ficava a treinar para futebolista, participando em vários torneios, num deles perdendo a final contra a “Artilharia” por 3-2. Começou a descuidar o serviço militar, unicamente empenhado em derrotar no campo de futebol a Marinha ou em não perder contra o Exército: “a minha especialidade em campo era perder na final.” Esteve 5 meses na tropa como futebolista.
Num salto operacional na herdade de Rio Frio (Pegões) soprava um vento diabólico com sinal vermelho. Contrariando as recomendações de segurança, o nosso Homem foi largado no ar, os cabos enrolaram-se, saltou a arma e a ração de combate, e caiu no chão como “um saco de batatas”. Todo partido, permaneceu 30 minutos imobilizado a gemer, não conseguindo atingir o objectivo a 1500 metros.
Em 1982, aproveitando as férias, partiu com o seu cunhado João (casado com a sua irmã Fátima) para França. Teve chance de trabalhar em Paris, onde ganharia 3 vezes mais do que na Portucel, mas a língua francesa era um forte obstáculo e não quis emigrar.
Em 1984, no café “Vai e Vem” na praça do Bocage, conheceu a sua futura companheira Ana e em 1986 nasceu o seu filho João, actualmente a trabalhar na TAP (herdou do pai o talento para a bola, tendo jogado nas camadas jovens do Vitória de Setúbal e nos “Pelezinhos”, e o “inconformismo vermelho”, tendo sido membro da JCP e da organização da festa do Avante).
Das viagens que fez, não esquece a passagem pelas Termas de Kangal na Turquia em 2002. O objectivo era tratar a Psoríase, uma doença crónica de pele. A terapia consistia em meter-se em jejum numa água vulcânica de elevada temperatura e esperar que uns “peixes turcos” (limpa-fungos) comessem a pele em mau estado e deixassem a boa: “era um tratamento animado, os peixes faziam cócegas, lembro-me de um Vietnamita que passou 6 horas a rir como um louco”.
Como só se alimentava a chás e fruta, perdeu 7 quilos e recuperou a forma física. Começou a espalhar o seu perfume de futebolista na Turquia e ganhou a alcunha de “Figo”. Também gostava da cerimónia de circuncisão dos miúdos turcos, “era uma festa de dois dias em que não pagava nada”.
Um dos miúdos que vivia num barracão de tijolo coberto por uma chapa de zinco via nele um craque e passou a acompanhá-lo para todo o lado. O nosso Homem convidava-o para jantar com ele, juntamente com um Romeno (jogava num clube francês recém-promovido à primeira divisão) e um Francês (andava com uma mala no carro apenas com notas de 5 euros). Formavam um sui generis quarteto.
Um dia apareceu a Mãe do miúdo, entrando na zona interdita às Mulheres:
– Oiça lá, o meu filho já não quer comer em casa, diz-me que o Senhor lhe paga tudo. Aqui tem melancias e pêssegos para lhe agradecer.
Perto do fim do tratamento (no último dia todos levavam chocolates para celebrar a liberdade) conheceu um Homem da Arábia Saudita. Tinha 4 mulheres (a mais velha com 29 anos) e uma caterva de filhos de cada uma. Havia dois seguranças por cabeça: “aquilo parecia um cortejo atrás de um só Homem”.
Partiu para Izmir, onde passou uma noite. Como prometera ao seu irmão Quim um casaco de cabedal turco, aventurou-se na cidade. Encontrou uns portugueses numa esplanada que lhe disseram:
– Estes turcos são mafiosos, precisas de aprender a palavra-passe para o coração deles: “Arkadash” (amigo, irmão de sangue)
Passado um tempo, em conversa com um turco num café, atirou-lhe a palavrinha mágica: “Arkadash”. O turco levantou-se logo e deu-lhe dois beijos. A partir daí levava o nosso Homem para todo o lado, à procura do casaco de cabedal.
Chegaram os dois aos confins de Izmir e desceram para uma cave, onde os esperava um comerciante rodeado de miúdos. Ordenou aos pequenos que trouxessem pistachos para a mesa das negociações.
– Quanto está disposto a pagar pelo casaco?
– 50.
– O preço é 100.
– 65?
– 75.
– Fechado.
Noutro dia, o nosso Homem sofreu uma queimadura no pé e teve que ir de Táxi para o Hospital. Chegou a hora de pagar:
– 42.
– Só pago 25. Na Turquia o taxímetro anda mais rápido do que o Táxi.
– 42.
– Espera aí, vou chamar o meu “Arkadash”.
– Pronto, paga 15.
O nosso Homem chama-se João Alves Fernandes e é o meu “Arkadash”, irmão de sangue, companheiro e amigo.
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Julho/2017