O diabo na Cadeia
Nasceu na cidade que só tem três estações: o Inverno diabólico, o Verão infernal e a estação dos caminhos-de-ferro, a mais preocupante, tendo em conta os preços de Belzebu para arder no inferno.
Numa família de sete irmãos, cedo teve de ajudar a família. Mal fez o exame da 4ª classe com distinção, foi trabalhar para uma empresa ligada à metalurgia, onde labutavam mais de duzentos trabalhadores. Foi aqui que conquistou o epíteto de “ O Diabo “, alcunha que o vai acompanhar pela vida fora. Jovem irreverente, carimbou a juventude com as mais insólitas diabruras, junto dos companheiros de trabalho e da administração da empresa. Todos lhe achavam imensa graça, por se tratar de um menino trabalhador com uma personalidade bem fincada. De pequeno diabinho, depressa foi promovido à categoria de Diabo. Desde cedo, se notava que as suas intervenções se revestiam de maldade requintada. As suas diabruras eram de grande inteligência e, por essa razão, tinha todo o crédito da administração empresarial.
Durante uma década trabalhou e aprendeu a arte de torneiro mecânico, especializando-se nesta área profissional.
Seguiu-se o serviço militar e um só caminho o esperava – o Regimento de Engenharia Militar-, no Quartel do Campo Grande em Lisboa, hoje transformada numa Universidade, onde se obtêm muitos diplomas e alguns cheiram a mafarrico.
Concorreu como torneiro mecânico para Angola através de uma empresa italiana, e foi aprovado sob obrigatoriedade de frequentar um curso de dois anos remunerado, na cidade de Brescia em Itália. Não foi em Roma, porque o diabo nunca poderia estar perto do Vaticano. Um ano de estágio chegou e seguiu para Angola.
Chegou a Angola vinte e três dias antes de começar o terrorismo em Luanda, um longo inferno. Trabalhou numa empresa italiana de laminagem para a construção civil. Seguiu para Cabinda, onde as chaminés de refinaria dos petróleos lembravam as labaredas de muitos infernos profissionais.
Não conseguiu vencer o inferno da descolonização exemplar e, em Outubro de 1975, regressou à Metrópole. Também ela estava no inferno com muitos diabos à solta, espalhados por todo o País.
Regressou às suas origens e, como retornado, foi olhado por uns com desconfiança e por outros com muita amizade e consideração. Havia, no entanto, duas coisas que se mantinham: a sua arte de torneiro mecânico impar de grande nível mundial e a sua alcunha “ O Diabo “.
Organizou novamente a sua vida profissional e fundou uma pequena empresa familiar, uma oficina abrangente de torneiro mecânico, serralharia e toda a gama de trabalhos afins.
Individualmente ou a nível de empresas, todos recorriam à sua arte, sempre que uma peça mais sofisticada era necessária socorriam-se do “Diabo”.
Um dia, coisas do Diabo!, teve uma lampejo de anjo e inventou um objecto extraordinário. O diabo pegou numa esferográfica e transformou-a numa pistola. As canetas passavam a escrever com sangue, disparando com eficácia. Logo que construiu a primeira, seguiram-se umas dezenas, há quem afirme que andou perto de uma centena. Clandestinamente vendeu algumas (da “ralé” aos altos cargos da nação), mas logo que o meritíssimo Deus, através da P.J., se inteirou do fabrico desta “ poderosa e mortífera arma de guerra”, viu motivo de alarme para a segurança nacional e socail. A mulher do meritíssimo, muito religiosa, chegou mesmo a dizer que “os fulminantes poderiam atingir a integridade de Deus”.
Perante este crime de lesa-pátria, os poderes da época quiseram apresentar um troféu de caça, e o “Diabo “ entrou na cadeia para cumprir uma pena de três anos, pelo fabrico de armas de guerra, que punham em causa a soberania nacional e entravavam o PREC (Processo Revolucionário Em Curso).
A opinião pública da cidade dividia-se. Uns diziam: “se este cidadão fosse de outro País, estava a trabalhar nas melhores oficinas militares”; outros apelavam para ser condecorado no 10 de Junho. Nada disso se concretizou.
Na Cadeia, “ O Diabo” quis ensinar nas oficinas outros diabinhos a arte de torneiro mecânico, mas estes estavam mais interessados em aprender técnicas para assaltar tudo o que cheirasse a dinheiro. “O Diabo” que trabalhasse …os reclusos só gostavam dos diabos vermelhos do Benfica.
Há dias e horas más até para um pobre Diabo…
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Julho/2013