Um almoço no Sachindongo
A emoção desta vez bateu forte. De facto o Sachindongo não é um bairro qualquer. É precisamente a antitese do que aparenta.
Nunca me esqueci, em Dezembro de 2019, me perdi com o Jimmy naquele entraçado de ruas e ruelas, à semelhança dos bairros islâmicos, as medinas, à volta da mesquita. Não há rua igual, ou casa diferente. Tudo se conjuga numa harmonia surreal num quadro do Dali.
Mas ao contrário do expectavel, um educado senhor notou que andava perdido. Ofereceu-se para me levar para uma saída deixando me efectivamente descansado. Houve mesmo o pitoresco de uma enorme banca de feirantes ter de desviar as mesas para eu passar. E o curioso é que ninguem protestou!
Aqui é o primeiro aspecto importante. É um bairro com vida própria. Onde o pequeno comércio promove uma «independência» económica dos seus habitantes. É um mundo de microeconomia. Onde cada um tem algo para vender e comprar.
Tal como que uma mão divina, tive finalmente a oportunidade de realizar este sonho: ver e sentir como estas gentes vivem, realçando que conseguem manter padrões de educação e limpeza, muito acima dos bairros periféricos das capitais europeias.
A minha amiga Lúcia tem sido incansavel em me mostrar a outra face da moeda. E obviamente que preparou um almoço porque seria ainda mais surreal, pessoas com possibilidades, ainda sobrecarregarem famílias com dificuldades. Mas mesmo assim, o «funge» ainda foi oferecido pela anfitriã. Sim, uma mulher, relativamente jovem, que teve uma boa vida no passado, mas carrega o fardo de educar cinco filhos.
A localização da casa não foi facil. Mas mais uma vez os jovens do bairro diziam que estavamos na direcção certa. Foi aí que entendi que existiam «caminhos» principais que, de facto, levam a pracetas ou pracinhas onde existe vários tipo de negócio. Neste caso até existia um chafariz, que funcionava. A casa que procuravamos estava perto dessa pracinha.
A recepção foi calorosa. A jovem tinha visitas em casa o que ainda mais me baralhou as contas. Mas o nucleo familiar eram 6 pessoas. Uma mãe e uma filha de N’Zagi estavam também alojadas. A pequena caíu e deslocou o femur fazia 3 semanas e queixava-se de dores.
Notei nela as olheiras de mal dormir. Nem sei se teria colchão para a aliviar. Mas senti a preocupação da mãe que aguardava pelo tratamento que basicamente seria colocar o osso da menina no sítio e engessar para que o cálcio possa restabelecer os danos provocados pela queda.
A casa não tinha energia. Nem porta, nem janelas. As cortinas tapavam a privacidade da familia.
Em frente um belo pátio, como nos bairros típicos de Lisboa, só que a argila dura fazia de calçada. Havia um estendal comunitário. Até neste pormenor senti o sinal de boa vizinhança e respeito pela roupa de cada um.
Obviamente que o olhar da anfitriã tinha uma lágrima escondida. Mesmo as conversas serem em lingua portuguesa e Chokué ao mesmo tempo, deu para entender a dor latente de uma mãe que sofre.
O pai fugido e desconhecido, foi referido na lingua nacional, mas deu para entender que pouco ajudava na educação dos filhos.
Mas o ambiente do almoço foi muito agradavel e cheirava limpeza todo aquele espaço. Mesmo a sala de entrada, como sala de visitas, estava impecavelmente limpa. A cozinha tinha um fogão e as bacias onde guardavam a água.
Moveis, ou equipamentos, não havia mesmo.
O por-do-sol trouxe a nostalgia da dor. E sentiu-se que ela precisava de beber para apagar o fogo que a atormentava. Porém, os filhos, denotavam uma independencia e de um alhear dos problemas da mãe. O mais velho transmitia muita responsabilidade e a mais velha ajudava sem pestanejar nas tarefas domésticas.
Enquanto nós, os mais velhos, falavamos, eles brincavam quase em silêncio com os amigos, mesmo ali ao lado. Até os mais pequenos, que mal andavam, pouco procuravam a mãe.
A moral da história, como diziamos antigamente, é «quem vê caras não vê corações». Um bairro sem planeamento, sem infraestruturas, consegue ter vida própria e convivência sã entre os seus habitantes. E mesmo na amargura sente-se felicidade de quem sabe receber.
Mesmo sabendo que a minha amiga Lucia fez o almoço, fiz questão de agradecer à anfitriã, como se ela o tivesse feito. Senti-a nas nuvens e por instantes o olhar comprometido desapareceu como um sonho que estivesse a viver.
Mas de facto, toda esta emoção que vivi, este sonho concretizado de poder entender o que aparentemente ninguém entende, tenho de agradecer à Lucia por mais esta oportunidade.
Sachindongo, 17 de Outubro de 2020
António José Alçada