Passagem rápida pela lota para comprar sardinhas e carapaus fresquinhos depois de uma caminhada em manhã de denso nevoeiro a envolver a cidade de Setúbal.
À hora marcada, entrada no ferry Pato Real com muitos madrugadores a caminho das praias ou do trabalho a sul da Península Setubalense.
Do outro lado do rio azul, um irmão aguarda a nossa chegada como prova de hospitalidade e irmandade. Depois de tanto sofrimento silencioso, finalmente chego a estes destinos que me são tão familiares.
Já na praia, uma Mãe não poupa esforços para arranjar as toalhas, os cremes, os chapéus, os brinquedos, o material higiénico, os fatos de banho… Os filhos sempre agarrados à mão da Mãe. Mãe, tenho fome, Mãe quero fazer chichi, Mãe quero um gelado, Mãe não sei o que quero, Mãe já sei o que quero… Mãe, o João atirou-me com areia para os olhos, Mãe ele molhou-me, Mãe ele bateu-me… Às vezes entram em cena os avós, sempre preocupados com os netos. Olha o teu irmão Diogo, olha a tua prima Leonor, olha que vão fugir para a água e correm perigo. O Pai lê calmamente o jornal, indiferente a esta agitação, e só levanta os olhos para as donzelas seminuas e bronzeadas.
Às Mães deste país falta-lhes um sindicato, pois continuam a lutar isoladas e o seu grande capital são os filhos. Há Mães desempregadas, Mães com ordenados em atraso, Mães sem horários, Mães sem férias, Mães sem apoio, Mães incompreendidas, Mães na miséria…
Estes pensamentos na Praia da Comporta são distraídos pelas memórias dos tempos felizes que por aqui passei, no já extinto Parque de Campismo da Tróia ou na moradia do Joaquim Gomes, tantos Verões sem luz eléctrica e o pinhal como casa-de-banho… Recordo as noites fraternas no Café Restaurante de António Rosário, mais conhecido por Sá Carneiro, pois tinha uma feição idêntica à do político prematuramente falecido. Ali jogávamos longas suecas… Recordo o Talho do Rogério Mota (alentejano) e da sua esposa Augusta Magro Mota (transmontana)… Além da simpatia, tinham as melhores linguiças do mundo. Com eles fui muitas vezes ao lingueirão e às conquilhas.
Hoje, o baptizado “Talho da Comporta” é gerido por um filho de Cesaltino Nunes, um bom profissional, Chefe de Guardas do E.P. de Pinheiro da Cruz, residente no Poçanco. Ali ao lado ainda está a Mercearia Gomes, a vender “produtos genuínos desde 1915.” Não muito longe, o típico Restaurante Hexágono, nos seus telhados ainda nidificam as cegonhas… O nosso Homem conta-me que começou a trabalhar nos arrozais com pouca idade e recorda os inúmeros ranchos vindos de terras algarvias e aveirenses, principalmente de Tocha e Mira, para plantarem, mondarem e ceifarem o arroz. O trabalho roçava a escravatura, a lembrar o modelo chinês… Aquelas gentes dormiam em catres nos celeiros, usando sacos de arroz como aconchego, ou em cabanas cobertas com a palha do cereal… Ainda avistamos algumas, poucas, cabanas cobertas de palha, a grande moda actual é fazer telheiros de lojas e casas comerciais. Havia os capatazes, tipo regedores de freguesia, que no exercício da sua autoridade espalhavam a descendência pelos campos… Mais tarde construíram casas para essas gentes e algumas delas passaram a ter habitação própria, em termos oficiais e legais. O nosso Homem remata: “É verdade que querem fazer deste espaço um condomínio fechado para alguns endinheirados, mas não há milionários que comprem a alma a este Povo.”
Em frente às cavalariças de outrora, está outro grande armazém: a Casa da Cultura da Comporta.
No fundo da Rua D. Afonso Henriques, um largo onde se situa o Clube Recreativo da Herdade da Comporta, fundado a 1/3/1953, vemos uma agência bancária encimada por um sino de campanário. No passado tocava todos os dias para chamar os trabalhadores para os arrozais. Era um sino muito pontual na hora de mandar trabalhar, mas muito esquecido na hora do fim da labuta.
Quase em frente estão as instalações do antigo cinema, onde não faltavam filmes de cowboys para entreter o pessoal trabalhador, que projectava nos justiceiros do oeste os seus desejos mais secretos…
Converso com Fernando Mateus, o ex-responsável pelos armazéns do arroz. É uma enciclopédia viva, cujas histórias, condimentadas com as da sua esposa Isalinda Mateus (ex-cozinheira da Família Espírito Santo), dariam um grande livro. Desloca-se com frequência a Almaceda, Rochas de Baixo, Urgeiro, onde tem “um irmão”, um camarada de armas da Guerra do Ultramar, para partilhar sabores com o arroz ceifeira da Comporta.
A Comporta mudou muito com o aumento do turismo. Há várias crianças estrangeiras nas escolas e não faltam “artistas de novelas” e figurões cujo único ofício é vestir o mundo o mais cor-de-rosa possível. Em termos religiosos, a Igreja de Santo Isidoro, padroeiro dos agricultores, já alargou os horários das Eucaristias.
A hora de partir aproxima-se. Já vejo os golfinhos a saltar e a brincar sobre as ondas, já vejo a Cidade de Setúbal, o Estuário do Sado e a Reserva Natural da Serra da Arrábida. Já não vejo as traineiras que rumavam para sul, ao fim da tarde, à procura de peixe para a população portuguesa. Vejo ainda fuzileiros navais a desembarcaram nas areias da Comporta em vagos exercícios militares…
Passo ao lado das Ruínas Romanas e embarco num catamarã que me leva com centenas de pessoas ao Porto de Setúbal, ao cair da noite.
António Alves Fernandes
Agosto/2018
Setúbal