Em circunstâncias difíceis das nossas vidas, pelas quais todos passamos, cruzo-me com esta simpática, amorosa e delicada setubalense.
Ao olhar para ela, vem-me à memória Bocage, insigne poeta setubalense e português: “Magro de olhos azuis/Carão moreno, bem servido de pés, /Meão na altura, triste de facha, / O mesmo de figura, nariz alto no meio e não pequeno.” Eis o retrato que faria desta filha de Setúbal, de cinquenta anos, olhos azuis, lindas feições e cabelos, corpo pequeno… Nasceu junto à actual Praça do Brasil em Setúbal, numa moradia que os negócios imobiliários desenfreados destruíram, para levantar prédios de muitos andares, caixotes habitacionais.
Os seus progenitores tiveram nomes bíblicos, a mãe de nome Judite, mulher do Antigo Testamento, o pai de nome Jesus. Não admira a religiosidade desta jovem senhora.
Nasceu de uma família abastada, o seu avô materno, Jacinto dos Santos, foi um Pintor e Escultor Setubalense, e viveu num dos bairros mais carismáticos em Setúbal, o Bairro Santos Nicolau.
Um seu tio, Fernando Serra, foi engenheiro e colaborador de Rodrigo Ollero e Vergílio Domingues no projecto dos Estaleiros da Setenave. É também co-autor do Monumento na Praça de Portugal em Setúbal, construído graças ao voluntariado dos trabalhadores da construção naval, segundo o operário Manuel da Cruz Viegas Matias, algarvio com uma vida dedicada à indústria metalo-mecânica e ex-jogador da equipa sadina.
Enquanto a mãe era doméstica, o pai trabalhava para as Firmas de Fernando Oliveira, jogador e ex-dirigente do Vitória de Setúbal.
Os pais, preocupados com a educação da sua menina, contrataram um explicador e, quando frequentou com sete anos a Escola Primária do Bairro Santos Nicolau, já sabia o programa da 1ª Classe. A Professora Odete, sabendo que se tratava de uma aluna super dotada, não demorou muito tempo a propô-la para exame da 4ª Classe, do qual obteve uma boa classificação.
No Ciclo Preparatório nas Amoreiras, teve algumas dificuldades na disciplina de educação física, mas tinha uma amiga Maia (uma abelha Maia), que lhe dava a mão e chegava sempre ao fim das corridas.
Já era sedutora e nas aulas mandava bilhetinhos aos seus companheiros de ciclo a pedir-lhes beijinhos. Eles, envergonhados, não lhe correspondiam.
Seguiu para o Liceu Nacional de Setúbal onde obteve o sétimo ano, actualmente o décimo segundo ano.
Dificuldades económicas dos pais impediram o prosseguimento para os estudos universitários, como tanto gostava e desejava. Para preencher esse grande vazio, essa grande frustração, tirou uns cursos de formação profissional. Como era pequena, teve dificuldade nas aulas de dactilografia e o seu forte não eram as teclas da velha máquina Messa de escrever. Fez secretariado, com aprofundamento da língua francesa e inglesa e tentou um curso de jornalismo.
Um dia, um jovem (um caminheiro errante), bateu à sua porta à procura da morada de uma namorada. Disse-lhe que desconhecia o nome dessa menina e a morada inscrita num bilhetinho. O Jovem ficou deslumbrado com tanta beleza e, apesar das restrições familiares em termos de contactos, ficaram à porta de casa a conversar. O estranho jovem convidou-a para vir tomar um sumo num dos cafés mais próximos. O sumo acompanhado com o puro doce de laranja de Setúbal adocicou as suas paixões, não demorando muito tempo a juntarem os trapinhos e a casarem. Ao ouvi-la vem à memória uma frase de Franz Kafka: “normalmente a pessoa de quem se anda à procura vive mesmo ao lado.”
No entanto, ao fim de alguns anos, o casamento fracassou. Para agravar esta situação, o pai faleceu, causando-lhe uma enorme depressão, que a atirou para um internamento no Miguel Bombarda em Lisboa: “Entrei num gueto onde nunca vi tanta imundície, sujidade e falta de calor humano. Só nos últimos dias estive numa enfermaria com outras condições. Só me senti feliz depois de ter saído daquele inferno.” Ontem, como hoje, a Saúde Mental é o parente pobre da saúde em Portugal.
Diz-me que a inveja de uma colega na EDP, uma característica muito enraizada na mentalidade dos portugueses, foi a causa do seu despedimento para “a invejosa subir de carreira.”
Tem muitas saudades de Setúbal, onde já não vai há algum tempo: “É uma Cidade adorável, linda, o rio azul, as praias, a montanha, os monumentos, as belas Igrejas onde rezava com frequência. Espero um dia ali regressar, ir às minhas origens e lá ficar.”
Recorro novamente a Bocage nas sendas desta jovem setubalense: “Eu me ausento de ti pátrio Sado,/Mansa corrente de leitos, amena,/Em cuja praia o nome de Filena/Mil beijos tenho escrito, mil beijado:/Nunca mais me verás entre o meu gado/Soprando a namorada e branda avena,/A cujo som descias mais serena,/Mais vagarosa para o mar salgado…”
António Alves Fernandes
Agosto/2018
Setúbal