VOANDO SOBRE UM NINHO DE CUCOS
“De padre, médico e louco todos temos um pouco” (adágio popular)
O Ano começou ao som das trombetas do Apocalipse. De Aldeia de Joanes partiu o amigo Quim Nogueira e as “mulheres de armas” Beatriz Lambelho e Alda Salvado (contam-me que o texto que lhe dediquei há uns anos foi lido na Igreja na hora da despedida), pessoas dinâmicas de grande dedicação à Aldeia que amaram.
Na Covilhã, o Francisco de Jesus Cabral, ex-companheiro na Escola Apostólica do Cristo Rei e muitos anos motorista nos Serviços Prisionais, conheceu o descanso eterno.
De Coimbra, a morte levou Manuel António Falcão até Trás-os-Montes, pai do grande médico e amigo Dr. Duarte Falcão; e a irmã hospitaleira Maria da Cruz, com raízes no Seixo do Côa (Sabugal), faleceu na véspera dos seus 97 anos, depois de uma longa vida praticando o lema: “Vive amando, ama sofrendo, sofre calando e sempre sorrindo.”
A chuva castiga as persianas e o telefone toca. O Sr. João está à minha espera, vai-me me conduzir ao Mondego para mais uma navegação hospitalar. No rádio o Papa fala das alterações climáticas.
Percorro corredores e mais corredores, à esquerda, à direita, novamente à esquerda, julgo por momentos estar no labirinto do Minotauro. Um homem pede-me um euro para a máquina do café, outro tabaco, uma senhora persegue-me para me apertar a mão, outra pede-me um bolo e cumprimenta-me com um beijo molhado, outros só olham, mudos.
Falo com o pessoal de enfermagem, autênticos heróis que desempenham uma missão difícil sem as devidas contrapartidas económicas. O carinho e atenção com que tratam estes doentes com mazelas psíquicas, tantas vezes marginalizados pela sociedade, não tem preço. Graças a estes profissionais de saúde, todos somos um pouco mais dignos.
Inteiro-me das regras como um seminarista e das tarefas que me cabem nestes dias: sou responsável pela sala de visitas e ponho a mesa para os meus companheiros, ajudado por uma simpática rapariga, de olhos lindos e cabelo brilhante.
Esta jovem amorosa de 30 anos conta-me, enquanto mete a faca e o garfo na mesa, que foi internada por bater na Mãe porque esta lhe ocultou o falecimento do Pai. Costuma acompanhar-me até à capela, onde rezamos juntos, e depois da refeição entoa cânticos religiosos. Pergunta sempre pela minha Esposa. Digo-lhe que estou sob observação devido aos “apagões da memória” e às “vertigens”.
De cá para lá, anda uma Senhora chorosa, não consegue deixar o sentimento de culpa por ter provocado o divórcio do filho, ao chamar à nora “loba que não quer trabalho.” Ontem o filho, que teve um acidente, veio trazer dinheiro à Mãe. Esta Senhora generosa tem agora um bolso cheio de rebuçados de café, que distribui pelos doentes e pelas visitas. Não esquece a minha Esposa: “a Dona Manuela é um Amor, levou-me um chá quando eu me estava a sentir tão mal. Tem uns olhos lindos de bondade.”
Numa cadeira de rodas, uma idosa com raízes na Covilhã fala consigo própria ininterruptamente. Do seu monólogo diário só entendo duas palavras: “não” e “merda”. Recusa-se a comer e a receber os filhos.
Sento-me no bar e fico à conversa com um rapaz gordo, benfiquista por todos os poros, braguilha inchada, sempre com uma revista do campeonato nacional de futebol debaixo do braço. Transporta sempre um rádio para ouvir os resultados do Benfica em todas as modalidades. Tornámo-nos amigos porque uma noite entrou no meu quarto para me dar um abraço: o Vitória de Setúbal tirara pontos ao Sporting com um golo do Edinho no último minuto. Também adora a minha Esposa, que todos os dias lhe traz “A Bola” para ler. Diz que foi internado porque viu o cunhado a fazer o sobrinho, e ri-se.
Junta-se a nós uma rapariga simpatiquíssima, estudou Gestão até se “encharcar de heroína”. Há três anos que esta é a sua casa e as irmãs não a visitam, acusam-na de ter destruído o património da família, de “ter trocado a herança pela heroína”. Hoje está triste porque foi apanhada a fumar no quarto e na capela, o que motivou um castigo e a privação do seu prazer. Pede-me um pastel de nata.
Aproxima-se um utente que nos pede dinheiro, alegando que é guarda prisional e tem duas filhas na Guarda Nacional Republicana. Atrás vem uma rapariga babada, exige também um pastel de natal para satisfazer a sua gula insaciável.
Ofereço-lhe um pacote de açucar para nos deixar sossegados e desvio os olhos para uma entrevista ao Jorge Sampaio com as gordas: “Estar vivo aos 70 anos é porreiro.”
De repente oiço um grito seguido de uma canção de protesto, é a nossa utente cantadeira, sempre contestando a comida, que para o meu gosto é melhor que em muitos restaurantes. Diz-se vítima por ser “uma intelectual que conhece os seus direitos”. Acorda sempre às 5 da manhã para cantar contra alguma coisa.
Estou na biblioteca a tentar escrever este texto quando me chamam para a fisioterapia. Falo de literatura com a fisioterapeuta, recomendando-lhe a leitura dos “cus de Judas.”
Segue-se o banho sob o olhar atento da enfermeira, a higiene é fundamental nesta casa, e assim nos apresentamos limpos para o debate democrático com a enfermeira-chefe, onde podemos expôr à vontade os nossos problemas e críticas, procurando soluções em conjunto num ambiente de respeito mútuo. Não faltam ateliers de actividades e conferências de espiritualidade.
No corredor encontro sempre uma moça a fazer ginástica, “tenho que estar em forma para os próximos Jogos Olímpicos”, e um antigo profissional de saúde que só pensa em vender o carro que nunca encontra. Só o irmão consegue tranquilizá-lo. Conheci-o deitado na minha cama, dormia como um anjo.
Entro na sala para espreitar a televisão. O Maestro Victorino de Almeida dá música: “toco Beethoven e Mozart desde os 3 anos”.
Diante de mim surge um senhor que abana a cabeça como um pinguim que saiu da água. Foi mal operado a um nervo…
António Alves Fernandes
Aldeia de Joanes
Janeiro/2018